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Dom Damasceno, em visita aos Arautos, fala sobre a importância da: "Fraternidade de Vida: Dom e Compromisso”

 

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Redação (Quarta-feira, 26-02-2020, Gaudium Press) O Cardeal Raymundo Damasceno Assis, Emérito de Aparecida e Comissário, em visita aos Arautos do Evangelho iniciou seus trabalhos com uma reflexão sobre a Quaresma. Abaixo transcrevemos na íntegra o documento:

Irmãos e Irmãs em Nosso Senhor Jesus Cristo,

Salve Maria!

Ao iniciarmos o tempo privilegiado da Quaresma, proponho-lhes que, juntos, nos coloquemos em sintonia com a esperança desde sempre vivida pelo Povo de Deus: “Atravessar o mar a pé enxuto e iniciar um caminho rumo à Terra Prometida”.

A Campanha da Fraternidade de 2020 e também o Ano Litúrgico que estamos percorrendo levam-nos a uma sintonia particular com a prática da compaixão, virtude caracterizada como um dos mais sublimes gestos da vida cristã. “Viu e sentiu compaixão” (Lc 10, 33 – 34).

A reflexão que pretendo desenvolver será dividida em três momentos:
1 – Lucas, o Evangelista da Compaixão;
2 – A Fraternidade: Dom e Compromisso;
3 – A ternura, prática da abstinência quaresmal.

Esses três momentos de nossa reflexão nos ajudarão, por certo, a vivenciar com maior intensidade os 40 dias que iremos passar no deserto quaresmal. Lembremo-nos de que o caminho é longo e árduo, mas que, durante o tempo em que estivermos no deserto, o Senhor, tal e qual fez com o povo de Israel, nos cobrirá com uma nuvem suave de manhã, para que o forte sol não nos queime, e, à noite, com uma doce luz, para que não nos percamos no meio do caminho.

1 – Lucas o Evangelista da Compaixão

Examinando-se o evangelho de Lucas em a toda a extensão de seus vinte e quatro capítulos, percebemos que cada um deles nos apresenta o drama humano de um evangelizador que, em diferentes situações, chega a se frustrar ou até mesmo a fracassar. O próprio Cardeal Martini, em sua obra O evangelizador em Lucas, descreve de forma bastante acurada os passos dados por Jesus durante todo o Seu caminho. Todo o evangelho de Lucas nos mostra o constante caminhar de Jesus na compaixão: Jerusalém – Emaús – Jerusalém.

No evangelho de Lucas, os discípulos percebem desde o primeiro momento que o Senhor é compassivo e misericordioso. Poder-se-ia afirmar que o Salmo 103 expressa todo o sentido teológico que o povo judeu confere aos gestos de Misericórdia e que o próprio Jesus encarna: Ele cura todas as nossas enfermidades, redime nossa vida, coroa-nos de amor e compaixão, faz justiça a todos os oprimidos… O amor do Senhor existe desde sempre e para sempre existirá (Sl 103,3.6.9-10.17). Alguns exegetas afirmam que, no salmo 103, vemos refletidos em antecipação traços do evangelho de Lucas. De fato, o amor do Senhor por todos nós existe desde sempre e para sempre.

Arautos do Evangelho o comissariato

Quaresma é um tempo propício para refletirmos sobre esse amor. Também o é o Ano Litúrgico que estamos vivendo. A Campanha da Fraternidade deste ano, que tem por tema “Fraternidade e Vida: Dom e Compromisso”, baseia-se precisamente nesta experiência da compaixão: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10, 33-34). A compaixão como gesto sempre acompanha a vida da fé e, exatamente por essa razão, nos compromete com o nosso irmão a quem vemos.

A compaixão permeia cada um dos capítulos do Evangelho de Lucas, e o fato de que o capítulo 10 nos seja proposto ao longo desta Quaresma nos ajuda a vislumbrar a necessidade que temos de passar pela experiência da compaixão! Somos, assim, convidados a sermos compassivos e a sentirmos a compaixão dos outros para conosco.

Hoje estamos excessivamente habituados com a eficácia, com os resultados e com tudo o que tenha a ver com a perfeição e a qualidade do produto. Ver e sentir tornou-se algo quase inusitado em nossa sociedade, até mesmo em nossas
próprias comunidades. O ver exige um grau profundo e exigente de “compaixão”. (Cf. Bento XVI, Homilia na Quarta-feira de Cinzas – 1º de março de 2006).

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“O amor, como Jesus nos está sempre mostrando no Evangelho, deve transformar-se em gestos concretos para com o próximo, especialmente para com os pobres e os necessitados, subordinando-se sempre o valor das “boas obras” à sinceridade da relação com o “Pai que está nos céus”, que “vê o oculto” e que “recompensará” todos os que fazem o bem de maneira humilde e abnegada (cf. Mt 6,1.4.6.18). A concretização do amor constitui um dos elementos fundamentais da vida dos cristãos, que são encorajados por Jesus a serem luz do mundo, para que os homens, vendo as suas “boas obras”, glorifiquem a Deus (cf. Mt 5,16). Como nunca, esta recomendação, no início da Quaresma, chega até nós de maneira muito oportuna, porque compreendemos cada vez mais que “para a Igreja, a caridade não é uma espécie de atividade de assistência social… mas pertence à sua natureza, é expressão irrenunciável da sua própria essência” (Deus caritas est, 25, a). O amor verdadeiro manifesta-se em gestos que não excluem ninguém, a exemplo do bom Samaritano que, com grande abertura de alma, ajudou um desconhecido em dificuldade, encontrado “por acaso” à beira da estrada (cf. Lc 10,31)”.

Uma das estradas mais seguras, se não a melhor de todas, no caminho penitencial é a proposta da compaixão. Nela, encontramos o tempo para viver nossa espiritualidade, nossa experiência de esmola e sobretudo a prática das obras de Misericórdia durante estes quarenta dias que, num certo sentido, nos levam até o deserto para, ali, revermos nossa vida interior.

2 – A Fraternidade: Dom e Compromisso

Podemos optar, mesmo no tempo do jejum e da abstinência, por uma vida descomprometida e cômoda, mas isto, simplesmente, tornaria o nosso tempo infértil e sem sentido.

A Quaresma nos coloca a todos, sem exceção, diante do irmão, daquele que, de diversas formas, nos fala na hora em que sofre. Não posso deixar de lado o irmão que me interpela e me interroga com a sua presença. A fraternidade nos compromete em todas as dimensões da nossa vida cristã. Já o advertia o Apóstolo Tiago na sua Carta: “Com efeito aquele que ouve a Palavra e não a pratica, assemelha-se ao homem que, observando seu rosto no espelho, se limita a observar-se e vai-se embora, esquecendo-se logo da sua aparência” (Tg 1,24).

Muitos pensam que o tempo de Quaresma é um tempo exclusivamente para fazer autorreflexões e nada mais; um tempo de atitudes fechadas, circunflexas. Vemos tantas pessoas que vivem o tempo de quaresma distante da prática da fraternidade, sem se comprometerem!

Na Quaresma, a esmola é compromisso, a oração é compromisso e o jejum também é compromisso. Tudo nesse tempo nos fala daquela proposta que o Senhor nos faz de recompensar as boas obras que são feitas em segredo.

Em suas visitas aos diferentes países, nas suas catequeses e nas suas homilias, o Papa Francisco tem sempre insistido nesta dupla realidade que forma uma unidade: Fraternidade e Compromisso. Só quem é irmão pode se comprometer.

Há uma belíssima catequese do Papa Francisco sobre a irmandade (18 de fevereiro de 2015) à qual podemos recorrer para aprofundar esta nossa reflexão sobre a fraternidade. O Sumo Pontífice, já no início da Catequese, nos brinda com estas palavras: “A ligação fraterna tem um lugar especial na história do povo de Deus, que recebe a sua revelação no vivo da experiência humana. O salmista canta a beleza da ligação fraterna: ‘Eis como é belo e como é doce que os irmãos vivam juntos!’ (Sl 132,1). E isto é verdade, a fraternidade é bonita! Jesus Cristo levou à sua plenitude também esta experiência humana de ser irmãos e irmãs, assumindo-a no amor trinitário e potencializando-a de forma que vá bem além das ligações de parentesco e possa superar todo muro de estranheza”.

Na vivência da fraternidade há, contudo, muitos desafios. A própria Escritura nos oferece páginas encantadoras de fraternidade ao lado de narrações dramáticas de inveja e divisão fraterna. A trágica história de Caim e Abel nos diz que o bem, entre irmãos, não raramente, em vez de alegrar pode levar à tristeza; em vez de suscitar gratidão, pode provocar ciúme, inveja, rivalidade.

Como conclusão de nossa reflexão – A Fraternidade: Dom e Compromisso – podemos afirmar que o meu irmão sempre me interpela, ou, melhor ainda, meu irmão sempre me leva a me comprometer. Vivamos, pois, intensamente essa proposta de compromisso e conseguiremos enxergar aqueles que estão ao nosso lado.

3 – A ternura, prática da abstinência quaresmal

Sempre é bom lembrar o significado do termo latino abstinentia como ação de se abster dos apetites. O próprio Epíteto já falava em se abster e suportar. A abstinência proposta por Jesus nasce de uma atitude interior que supera o mero apetite. Um coração arrependido desde suas entranhas já é um coração penitente e agradável ao Senhor. A ternura não se confunde com o sentimentalismo de quem pensa que o Senhor gosta de “obras de caridade” feitas com a única motivação de fazer algo por fazer. Não, a ternura como virtude nasce do convencimento claro e sincero de quem reconhece que fazer o bem é algo exigente e que, antes de mais nada, quem sofre e padece precisa, ao mesmo tempo, de um gesto suficientemente doce, e de um gesto, por assim dizer, “viril”.

Na Via Sacra, temos dois grandes personagens dotados de ternura. Verônica, que enxugou o rosto ensanguentado de Jesus passando no meio dos próprios algozes que açoitavam Jesus, e Simão de Cirene, que, sem medir as consequências do seu ato, ajudou Jesus a carregar a cruz. Os dois personagens citados levam-nos imediatamente a descobrir os gestos de compaixão que podemos ter para com aqueles que nos rodeiam. Aqui está a bela oportunidade deste ano litúrgico. Três verbos nos motivam a viver a ternura como experiência de uma forma constante de praticá-la: ver, sentir compaixão e cuidar.

Em tempos tão difíceis como os nossos, viver a ternura é muito mais do que uma forma de socialização ou de counseling (aconselhamento) para obter bons resultados nas vendas das grandes empresas. Ser doce é viver como viveu a nossa Santa Dulce dos Pobres, com caridade e ternura, com um sorriso nada convencional, muito menos promocional. Nosso sorriso deve nascer da necessidade que o mundo tem de ternura. Vivamos, pois, a graça da ternura como uma constante realidade da prática da compaixão.

Vale a pena recordar o que, na Bula do Papa Francisco, por ocasião do Ano Extraordinário da Misericórdia, ele lembrou mais de uma vez, referindo-se a São João Paulo II e à sua Encíclica Dives in Mericordia: “A misericórdia caiu em desuso”. O homem contemporâneo esqueceu que a misericórdia pode ser praticada e decidiu-se, ou melhor, optou pela agressividade e pela vingança. Diante dessa realidade, tornou-se urgente, segundo o Papa Francisco, inspirar e motivar os cristãos a praticar a misericórdia.

Torna-se, então, urgente fazer com que a compaixão e a misericórdia caminhem lado a lado, como urgente é fazer com que os gestos de ternura sejam cada vez mais reconhecidos por todos nós. Por essa razão, um passo concreto que devemos dar é sair do nosso individualismo e narcisismo constantes.

Neste momento de nossa reflexão, podemos nos perguntar: “O que fazer quando eu, por causa de meus eventuais individualismo e narcisismo, vier a correr o risco de perder-me em meu próprio ser?” Temos de estar muito atentos a essa questão porque muitas vezes pensamos ter tudo ou tudo possuir e que, por isso, nunca nos iremos ver às margens de uma estrada perigosa, onde poderemos ser assaltados ou colocados em situações limites.
O individualismo fecha qualquer pessoa no seu próprio mundo tornando-a incapaz de olhar em direção do outro. Para superar o individualismo, o Papa Francisco instituiu o Ano da Misericórdia com a intenção de promover uma espécie de encontro mundial de uns com os outros e de todos com a misericórdia do Pai.

Com o Ano da Misericórdia, o Papa Francisco fez-nos a proposta de irmos ao encontro dos feridos, daqueles que, por alguma razão, se distanciaram do rosto de Deus e precisam se sentir de novo amados por Ele. A Igreja, insiste o Papa, tem a missão de acolher. “Estreitemos ainda mais nossas mãos para chegar perto de quem está precisando”. Superar o individualismo tornar-se-á uma exigência constante do nosso ser cristão, que almejamos viver sempre em comunidade.

Do exposto, conclui-se que é de vital importância a prática da ternura porque ela nos direciona imediatamente ao outro. Isso é o que podemos ver na parábola do Samaritano. O cristão não pode fazer de conta a vida toda que não enxerga os outros. Essa atitude é própria do sacerdote e do levita, que, talvez, conhecessem melhor do que ninguém a necessidade de colocar óleo e vinho nas feridas, mas preferiram “mudar” o caminho fazendo de conta que não tinham visto alguém.

Estamos nos aproximando do final de nossa reflexão. Este é o momento de elegermos uma ação a ser colocada em prática neste tempo quaresmal. Proponho vivermos este tempo em companhia da Mãe da Divina Ternura, aquela que cura todas as feridas. Ela soube caminhar de Belém até o Egito e retornar a Nazaré sem mágoa alguma.
Maria sabe muito bem que seus filhos e filhas precisamos de sua ternura maternal, de sua bondade, de sua companhia e de seus gestos concretos que promovem aproximação entre as pessoas a fim de sermos cada vez humanos e misericordiosos, compassivos e generosos.

Desejo-lhes uma Quaresma sustentada no amor da Ternura Divina do Nosso Pai Criador, do Filho Redentor e do Espirito, que, com seu bálsamo, retira todas as asperezas e durezas do nosso coração.
Deus abençoe a todos,

Caieiras- SP, fevereiro de 2020.

Dom Raymundo Cardeal Damasceno Assis.
Arcebispo Emérito de Aparecida – SP
Comissário para os Arautos do Evangelho

 

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