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O instrumento que vale por uma orquestra

São Paulo (Terça-feira, 26-10-2010, Gaudium Press) Muito se perderia em uma celebração litúrgica católica caso não houvesse um acompanhamento musical. É certo que permaneceria o essencial dela, a atenção especial às palavras do sacerdote e aos gestos da cerimônia que nos ligam mais diretamente à palavra de Deus e nos falam de Seu Mistério. Contudo, certamente, o papel da música não pode ser desprezado como um catalisador para uma experiência religiosa mais rica e profunda.

Obviamente, não se trata de qualquer música e, principalmente, nem de qualquer instrumento. No caso da Igreja Católica, a música escolhida para acompanhar a liturgia é a sacra e o instrumento usualmente utilizado e considerado ideal é o órgão, ou melhor, o órgão de tubos. Mas, afinal, o que é este instrumento complexo cujo som lembra uma orquestra e quem são as pessoas especiais que o manejam?

O instrumento de louvor a Deus

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Diferentes timbres projetados pelo órgão dão a impressão àquele que ouve de que se trata de
uma orquestra

O órgão é um instrumento musical que se caracteriza pela presença de diversos tubos em seu exterior (às vezes milhares), responsáveis pela saída do som harmônico percebido como música. É considerado um instrumento de sopro, mas difere do mesmo porque o ar que faz funcioná-lo não vem dos pulmões humanos, como no caso de uma flauta ou de um saxofone, e sim de um sistema de ar comprimido, chamado fole, que é acionado por meio de teclas. Ou seja, o órgão é um instrumento de sopro e de teclas, ao mesmo tempo.

Sua origem remonta ao século III a.C.; época em que o instrumento era um pouco distinto do que é atualmente. Distinto porque precisava da força hidráulica para ser acionado e possuía apenas sete tubos, cada um referindo-se necessariamente a uma nota musical. Com o passar do tempo, no entanto, apesar da complexificação do instrumento, que foi recebendo mais tubos e emitindo sons com timbres diferentes, este tipo de órgão, eminentemente hidráulico, foi perdendo espaço e no século V acabou sendo substituído pelo órgão como hoje conhecemos: o órgão pneumático.

A história do órgão musical como instrumento a ser utilizado nas Igrejas para acompanhar as cerimônias litúrgicas começa no século XIV, mas, antes, em meados dos anos 1200, São Tomás de Aquino já havia falado sobre o instrumento ao reconhecer que os sons emitidos por ele elevavam a alma dos homens a Deus. Pode-se ir mais longe ainda na linha do tempo, se se admitir que o órgão é uma evolução da flauta – como alguns estudiosos consideram, pois aí mesmo nos textos bíblicos já haveria referências ao instrumento, que era ligado ao louvor a Deus.

O certo é que a ligação do órgão de tubos com a a Igreja Católica se fortaleceu ao longo dos anos, ocupando o instrumento cada vez mais um lugar de destaque na liturgia cristã, a ponto de no Concílio Vaticano II reafirmar a excelência do órgão na tradição musical e nos atos de culto divino da Igreja, declarando o grande apreço da Igreja Latina pelo instrumento. Na ocasião, o órgão foi definido pelos prelados como “tradicional, cujo som é capaz de dar às cerimônias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus”.

Para se ter uma ideia do forte elo entre o órgão musical e Igreja, no Brasil, apenas dois locais que não são templos religiosos possuem o instrumento: a Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e o Teatro Municipal de São Paulo. Não é de se espantar então que aquele que é considerado o maior órgão da América Latina esteja em uma Igreja Católica, mais especificamente na Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, em Niterói, estado do Rio de Janeiro.

O maior órgão da América Latina e seu único organista

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Padre Marcello Martiniano Ferreira é organista formado pelo Instituto Pontifício de Música Sacra, de Roma, Itália

O órgão da Basílica Nossa Senhora Auxiliadora, de Niterói, possui nada menos que 11.130 tubos, de tamanhos que vão desde 8 milímetros até 12 metros de altura, e só é tocado atualmente por uma única pessoa: Padre Marcello Martiniano Ferreira, SDB, organista titular da Basílica há mais de 50 anos. Segundo o sacerdote, a exclusividade no uso do instrumento não se deve por algum tipo de cuidado excessivo em relação ao equipamento e sim porque poucos sabem tocá-lo no país.

Pode ser, mas o fato é que poucos tiveram as oportunidades que Padre Marcello teve para aprender a desempenhar um instrumento tão complexo. Aos 26 anos, em 1959, já diplomado em piano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ordenado sacerdote, Padre Marcello foi transferido para a Basílica de Niterói. Lá, por sua aptidão musical, ficou encarregado do órgão da igreja, quando pôde estudar mais o instrumento.

Mas sua vida e sua relação com o instrumento mudaram quando Padre Marcello foi estudar órgão principal no Instituto Pontifício de Música Sacra, em Roma, Itália. Na escola musical italiana, o sacerdote pôde ter aulas com um dos grandes mestres na área, segundo ele: o organista e cravista Ferruccio Vignanelli, que lhe possibilitou aprender um repertório muito grande e dominar um órgão tão complexo quanto aquele que havia deixado em Niterói.

Tanto conhecimento poderia ser repassado, mas o sacerdote organista confessa que não encontra tempo em sua rotina marcada por intensos estudos e por concertos. O mais recente deles, aliás, acontecerá na própria Basílica Nossa Senhora Auxiliadora, hoje, 27 de outubro, com Padre Marcello desempenhando no órgão de mais de 11 mil tubos obras de renomados músicos como Johann Sebastian Bach, Charles-Marie Widor, Marco Enrico Bosi e Maurice Duruflé.

Padre Marcello, obviamente, dedica-se também às atividades condizentes ao sacerdócio. Todos os domingos preside sua missa, mas nem por isso deixa de tocar o órgão de tubos. Uma reforma realizada no instrumento em 1996 trocou a transmissão elétrica utilizada por 40 anos por uma transmissão eletrônica, que possibilitou ao usuário – no caso Padre Marcello – controlar o órgão via controle remoto e gravar mais músicas nele. “Tal sistema possibilita eu tocar 16 peças na minha própria missa”, afirma.

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Basílica Nossa Senhora Auxiliadora vista de dentro. Acima, alguns dos mais de 11 mil tubos que possui o órgão da igreja

Como organista oficial da Basílica Nossa Senhora Auxiliadora, o sacerdote salesiano acompanha musicalmente não só as missas presididas por ele, como também as demais celebrações que acontecem no templo. E do alto dos seus 50 anos de experiência, Padre Marcello acredita que o órgão de tubos seja o instrumento ideal para se acompanhar missas e demais celebrações litúrgicas. “Por sua expressividade e força”, diz.

Conforme Padre Marcello, não é a toa que Papas vêm recomendando o órgão como instrumento ideal para acompanhar a liturgia. “O órgão é uma orquestra completa”, diz. E isto pode ser dito porque seus registros, suas possibilidades fônicas, seus diferentes timbres dão a impressão àquele que ouve de que se trata de uma orquestra, quando, de fato, trata-se apenas de um único instrumento.

Profissão de fé

 Talvez, por isso, por essa profusão de timbres é que Benedito Rosa, atualmente, mestre de Capela e organista titular da Catedral de São Sebastião do Rio de Janeiro, tenha tido uma impressão que até hoje não sabe explicar quando ouviu pela primeira vez o som de um órgão. Foi por este som que Benedito começou a estudar um instrumento musical. Primeiro, piano em uma escola particular. Depois, piano na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em seguida o órgão. “Quando estava no segundo ano da instituição, descobri que não era o piano que me interessava, e sim o órgão. É uma questão inexplicável a afinidade que eu tive com o instrumento”, diz.

Como não possuía um órgão e precisava estudar e praticar, a maneira arranjada foi tocar em igrejas. E assim, Benedito Rosa entrou no mercado de trabalho para organistas no Brasil. O tempo passou, Benedito se formou, tornou-se mestre em órgão e excursionou pelo mundo como regente. Em 1998, após 10 anos de formado, conseguiu sua chance de ouro, tornando-se mestre de capela e organista titular de uma Catedral: a de São Sebastião do Rio de janeiro. Segundo Benedito, tocar em uma Catedral tem uma importância histórica, pois era lá, no século XVII e XVIII, quando a música estava muito atrelada à Igreja, que um músico se tornava conhecido, explica.

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Em 1998, após 10 anos de formado, Benedito conseguiu tornar-se mestre de capela e organista titular da Catedral do Rio de Janeiro

Hoje, além das funções que exerce na Catedral e os concertos em que se apresenta, Benedito Rosa trabalha como professor da Escola de Música do Cetep-Quintino (Fundação de Apoio às Escolas Técnicas). Contudo, o organista avisa: “A partir do momento em que você decide ser organista, é preciso ‘se virar'”. E a opção, no Brasil, conforme Benedito, são as igrejas. “Eu sou professor, mas não é comum isso por aqui, até porque existem apenas dois órgãos de tubo que não pertencem à Igreja no país”, lembra.

Além da falta de instrumentos, Benedito detecta como obstáculo para a melhor estruturação de um mercado de organistas no país a falta de mão-de-obra qualificada. “Por exemplo, no Rio de Janeiro, as igrejas têm órgãos, mas não têm organistas com uma formação competente”. Conforme o organista, a solução para este problema deveria vir das próprias igrejas, que precisam procurar bons músicos e investir neles. “Minha esperança é que tenhamos, um dia, cada igreja com seu mestre de capela, coro e etc. Porque a igreja precisa de música”, conclui.

Bruno D’Angelo

 

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