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O segundo Concílio de Constantinopla

Há vários pressupostos que precisamos ter em vista para poder compreender bem todo o alcance que envolve o estudo deste concílio. Nele foram condenados os “três capítulos”, que mais adiante explicaremos. A temática do concílio girou em torno da heresia monofisita – surgida no Oriente, mais propriamente em Alexandria – e é justamente por isto que se fazem necessárias explicações prévias, à guisa de pressupostos, posto que esta heresia teve uma duração de nada menos de dois séculos, desde o ano de 433 até 681, isto se considerarmos que o monotelismo [heresia que propunha a existência de apenas uma vontade (a divina) em Nosso Senhor Jesus Cristo] “não é outra coisa que uma nova forma de monofisismo”(LLORCA, 2001, p. 736-7)[1].

Um destes pressupostos, talvez o principal, é a existência de duas escolas de pensamento altamente influentes na teologia do mundo Oriental, a de Alexandria e a de Antioquia. Esta influência deve-se sobretudo ao fato de que cada uma das escolas pertencia a um Patriarcado Oriental homônimo nos quais costumava surgirem grandes Santos ou homens de cultura que, com sua erudição, explicitavam e desenvolviam amplamente a doutrina católica,[2] – por ocasião das grandes heresias – que ainda estava um pouco insípida nas suas definições, não que ela o fosse de fato na sua substância. Foi somente com o passar do tempo que ela foi se tornando explicita. Tais eram os casos de, quanto à escola de Alexandria, São Alexandre, Santo Atanásio, São Cirilo, Pseudo-Dionisio Areopagita, Leôncio de Bizâncio; e no tocante a Antioqueno, São Luciano de Antioquia, Diodoro de Tarso, Teodoro de Mopsuéstia, São João Crisóstomo, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa

Estas escolas não comungavam das mesmas ideologias e formas de pensar, a respeito de questões dogmáticas e foi isto o que desencadeou a heresia monofisita. ROPS nos ilustra bem isto dizendo:

há duas maneiras de abordar este mistério da fé: ou da forma que nos sugere o célebre prólogo do quarto Evangelho, isto é, partindo do Verbo divino que reside desde toda a eternidade no seio do Pai e que se torna homem em determinado momento do tempo para salvar o mundo – e isto era o que se repetia na escola de Alexandria; ou então partindo da amável figura que vemos no Evangelho e considerando todos os traços tão comoventes que a aproximam de nós, para descobrir através do seu comportamento e sobretudo dos seus milagres a prova da sua divindade – e esse era o tema preferido pela escola de Antioquia. A verdade completa é que Cristo é ao mesmo tempo tudo isso: o Verbo e o Homem perfeito (…) Mas, se insistirmos apenas num desses dois aspectos da doutrina, deixando de lado o outro, cairemos numa ou noutra das grandes correntes heréticas que vão desenvolver-se no Oriente.

Os demais autores não discordam desta perspectiva de rivalidade existentes entre as duas escolas e a este respeito LLORCA também tem um comentário:

“Tendo presente o antagonismo das duas rivais, Antioquia e Alexandria, nas questões cristológicas, necessariamente tinha que produzir-se uma reação a favor do monofisismo, como réplica ao nestorianismo patrocinado em Antioquia”(2001, p. 535)[3].

Nosso intuito não é fazer deste trabalho um tratado a respeito das heresias cristológicas.Por isso omitimos aqui toda a temática do nestorianismo, salvo alguns dados importantes que precisamos guardar, e que serão expostos ao seu devido tempo, a fim de entender certos aspectos do segundo Concílio de Constantinopla tal como a questão dos “tres capítulos”. Aliás, não podemos deixar de lembrar estes pontos, posto que as heresias do oriente formam todas elas “um conjunto (…) de ações e reações” no dizer de ROPS (1991, p. 152) e, portanto, necessariamente há ligações entre uma e outra.

A heresia monofisita consistia na negação da existência da natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta heresia tinha surgido em Alexandria e seus principais adeptos eram Eutiques (criador da heresia) e o Patriarca que sucedeu a São Cirilo na sede de Alexandria, Dióscoro (o porta-voz dela). Estes afirmavam terem-se inspirado na doutrina que São Cirilo de Alexandria tinha desenvolvido – sobretudo na sua obra dos doze anatematismos -, para sustentar as teses monofisitas. De fato “algumas expressões empregadas por ele (São Cirilo) dão margem a esta interpretação errônea (monofisita), e, de fato, os monofisitas (…) o apresentaram sempre (a São Cirilo) como partidário seu”[4](LLORCA, 2001, p. 532). Mas estes ignoravam, ou pelo menos dissimulavam fazê-lo, que São Cirilo tinha feito um edito de união em 433 com João (Patriarca de Antioquia, receoso de suas doutrinas) no qual ele renunciava a todas as expressões contidas nas suas obras que poderiam dar margem a que ele cresse de que a união pessoal de Nosso Senhor Jesus Cristo convertia as duas naturezas numa só.

Como era costume acontecer, a heresia logo que começou foi ganhando força e autoridade e os monofisitas conseguiram colocar nas principais sedes episcopais adeptos da heresia, conseguindo inclusive ganhar as boas graças do Imperador bizantino. Resumindo , o Papa São Leão Magno foi um dos homens providências que intervieram energicamente a favor da ortodoxia na questão monofisita. Vale a pena ressaltar aqui que um homem ocupando a sede de São Pedro, intransigente e radical como ele, foi o que faltou posteriormente na Celebração do segundo Concílio de Constantinopla. São Leão aprovou a sugestão do Imperador Marciano – que tinha subido ao trono recentemente e era a favor da ortodoxia – de convocar um concílio para sepultar de uma vez a heresia. O mesmo foi prontamente celebrado na cidade de Calcedônia, tornando-se assim, após a aprovação do Papa, o quarto concílio ecumênico.

Como último pressuposto – somos da tese que as grandes introduções preparam as rápidas e fáceis conclusões – temos de falar a respeito de outras duas pessoas, que embora tinham sido providenciais com os seus escritos a favor da sã doutrina, são figuras controvertidas e polêmicas, pois, no tempo da heresia nestoriana jogaram um papel, de alguma forma, oposto ao da ortodoxia pois, como dissemos mais acima, pertenciam à escola antioquena… Contudo, após o Concílio de Éfeso eles tinham-se apartado da doutrina e dos partidários de Nestório, mas mantiveram-se igualmente afastados de São Cirilo pelo receio de cair no extremo oposto, ou seja o monofisismo. Estas duas figuras são Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa, sendo que este último, junto com outros poucos, “mais bem tendiam ao extremo oposto, ou não manifestavam tão firme consistência em suas convicções”(LLORCA, 2001, p. 537) no que diz respeito à heresia monofisita. Mas o que importa ressaltar a respeito deles dois é que prestaram – um mais, outro menos – uma ajuda inegável à Igreja no Concílio de Calcedônia ajudando a condenar o monofisismo. Prova disto é que chegou-se ao ponto de celebrar uma sessão especialmente para resolver os problemas doutrinários que envolviam os dois autores mencionados e na qual eles foram declarados inteiramente inocentes, após teremse retratados dos seus escritos de cunho nestoriano.

Com a condenação expressa do monofisismo e o desterro de seus principais adversários,Eutiques e Dióscoro, parecia tudo acabado, mas… o mal sempre aprende de suas derrotas passadas sabendo tirar proveito delas para fazer novas investidas contra o bem. “Com as decisões do concílio de Calcedônia e as medidas rigorosas tomadas pelos imperadores não ficou tudo terminado. Ao contrário, as contendas que surgiram depois adquiriram grande extensão e intensidade, dando origem a novas complicações” (LLORCA, 2001, p. 546)[5]. E com isto chegamos ao ponto central deste capítulo, ou seja, o segundo Concílio de Constantinopla, o quinto ecumênico.

A nosso ver, se bem que não achemos citações para apoiar este ponto de vista, o principal erro para que a heresia cobrasse novo vigor foi o fato de que no Concílio de Calcedônia os partidários do monofisismo, com exceção de Eutiques e Dióscoro, foram tratados com benevolência pelos Padres conciliares, “quase todos foram acolhidos de novo no seio da Igreja católica, sempre previa aceptação daEpístola dogmática (do Papa São Leão) e a condenação de Eutiques”(LLORCA, 2001, p. 545)[6].

Os monofisitas conseguiram instalar-se em três sedes orientais: Jerusalém, Alexandria e Antioquia. Vale a pena ressaltar que a de Jerusalém e a de Antioquia foram tomadas mediante verdadeiras batalhas campais entre monges monofisitas e tropas imperiais. Outro fator que contribuiu para a expansão e duração da heresia foi que os imperadores sucessores de Marciano foram todos eles partidários da heresia monofisita. Com a subida de Justiniano I ao trono, o panorama mudou, pois ele quis “apoiar com todo o seu poder a religião católica e a sua legítima hierarquia” (LLORCA, 2001, p. 552). Ademais “não desaprovou nunca a superioridade da autoridade pontifícia” (Idem). Preocupado pela divisão que esta heresia estava causando no seu Império, quis ele colocar um fim em tudo, mediante a promoção de uma união religiosa.

Como costuma acontecer entre os imperadores bizantinos, Justiniano deixou-se levar pelas manhas e persuasões do Bispo monofisita de Cesaréia, Teodoro Askidas. Este disse-lhe que a fórmula de união consistia em condenar os “cabeças” da escola antioquena que, como vimos, eram especialmente odiados pelos monofisitas: ora, os cabecilhas (…) eram três: Teodoro de Mopsuéstia, com todos seus escritos, verdadeiro fundamento do nestorianismo; Teodoreto de Ciro, por seus escritos contra São Cirilo de Alexandria; Ibas de Edessa, por uma carta dirigida a Maris de Selêucia em defesa de Teodoro de Mopsuéstia e contra os anatematismos de São Cirilo (ibidem, p. 558)[7].

O problema é que, na realidade, estes escritos não precisavam de serem condenados, pois todos já o tinham sido a seu devido tempo, e o levantamento de uma questão como esta só iria produzir consequências desastrosas – como de fato as houve -; mas os monofisitas, e em especial Teodoro Askidas, viram nisso uma oportunidade única para ficar subentendida, aos olhos de todos, a condescendência do imperador com relação à heresia e assim ganhar a aprovação da mesma. Justiniano, não percebendo o que havia por detrás deste jogo, finalmente fez um edito condenando os três capítulos. No oriente a reação foi boa por estar majoritariamente dominado por heresiarcas, mas no ocidente foi como um balde de água fria e a indignação foi geral. Eles bem entenderam que com este edito os heresiarcas estavam atacando diretamente ao Concílio de Calcedônia, pois durante este Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa tinham-se manifestado como excelentes defensores da ortodoxia.

Justiniano não ficou só na elaboração do edito; ele foi mais longe, querendo impor a todos os principais cabeças da hierarquia eclesiástica a suscrição do documento, inclusive ao próprio Papa e aos ocidentais, onde encontrava mais resistência.

O Papa da época, Vigílio, foi convidado, mais bem obrigado, pelo imperador a comparecer a Constantinopla. Bem a contra gosto seu, o Papa dirigiu-se para lá, e uma vez ali, importunado e assediado, tanto pelo imperador como pelo Patriarca da Cidade, Mennas, publicou um manifesto chamado Iudicatum, no qual ele condenava os três capítulos fazendo a devida resalva de que o Concílio de Calcedônia ficava, mesmo assim, resguardado. De nenhuma maneira pode-se afirmar que esta atitude tomada pelo Papa tenha sido doutrinariamente incorreta; fazê-lo implicaria na negação de um dogma de fé: a infalibilidade Pontifícia. Mas podemos dizer, sim, com base em alguns autores[8], que foi uma atitude débil e muito transigente para com o imperador, comparando-se com a atitude tomada por outros que o precederam no trono, como São Leão Magno, cujo exemplo mencionamos mais acima, que em nenhum momento deixou-se levar ou iludir nem pelo imperador, nem por nenhuma outra hierarquia eclesiástica, por mais influente que esta fosse.

A consequência que, no Ocidente trouxe este manifesto, foi o de abrir ainda mais a ferida feita pelo edito do imperador. Todos os ocidentais viram na atitude do Papa um triunfo do monofisismo; as coisas chegaram a tal ponto que alguns acusaram o Papa de hereje, e um Sinodo em Cartago excomungou-o. À raiz destes e outros acontecimentos o Papa suspendeu seu Iudicatum.

Pouco tempo depois o imperador voltou novamente à carga, instigado pelos monofisitas, publicando um novo documento intitulado confissão da fé, o qual consistia numa renovação da condenação dos três capítulos. O Papa, que ainda achava-se em Constantinopla, indignou-se com esta atitude e deu várias manifestações públicas de seu desgosto, o que levou Justiniano a tentar aprisioná-lo. Tendo achado refúgio numa cidade perto de Calcedônia, o Papa lançou uma excomunhão contra Askidas e Mennas bem como a todos os seus partidários. Vendo Justiniano que sua intransigência tinha-o levado muito longe retratou-se e com isso deu liberdade ao Papa para que voltasse ao seu trono pontifício em Roma.

É impossível não ver em tudo isto um “cesaropapismo bizantino”(ROPS, 1991, p. 187) o mais soberbo e exacerbado da parte de Justiniano. Embora este tenha se destacado muito pela sua política de governo e expansão do império, muito deixou a desejar pela sua política religiosa. Foi este mesmo o motivo que o levou a, mais uma vez, tentar fazer uma derradeira união entre católicos ortodoxos e monofisitas herejes e, como era de se esperar, favorecendo estes últimos.

Justiniano reuniu um Sínodo em Constantinopla, ao qual compareceram 151 bispos, sendo que somente 6 deles eram ocidentais, procedentes da África. Com a devida “proteção” (no dizer de Rops[9]) das tropas imperiais tudo correu da melhor forma possível, sem percalços . Evidentemente foram condenados os três capítulos. Mas tudo esteve a ponto de ruir quando o Papa interveio, para a surpresa e consternação geral de todos – especialmente do imperador -, publicando umConstitutum. Nele o Papa optava por um “meio termo: condenava 60 proposições de Teodoro de Mopsuéstia, mas proibia a condenação de Teodoreto e de Ibas”(LLORCA, 2001, p. 562).

Obviamente esta decisão do Papa não agradou nada ao imperador, quem desencadeou uma nova perseguição contra o Papa, desterrando-o. A propósito desta nova atitude violenta de Justiniano, ROPS nos conta algo que, a não ser pelas testemunhas oculares, simplesmente não seria passível de crédito:

(Justiniano) preparava-se para homologar as doutrinas imperiais, ainda com a esperança – ilusória – de reconduzir os monofisitas à unidade, quando Vigílio, mais uma vez, atravessou o caminho. Assistiu-se então ao espetáculo de um Papa arrancado pelos soldados da igreja onde buscara refúgio, puxado pelos pés, pelos cabelos e pela barba – tão violentamente que o altar a que se abraçara desmoronou!-, obrigado a fugir e a refugiar-se em Calcedônia,torturado pelos emissários do Imperador, que pretendia obter a sua submissão.

Depois disto evidentemente o Papa voltou atrás como o fez com seu Iudicatum e escreveu um segundo Constitutum, no qual ele aceitou sem limitações as decisões do Sínodo, tornando-o assim o Segundo Concílio de Constantinopla, e o quinto ecumênico. Foi difícil para o Ocidente aceitar o concílio, mas com o esforço do sucessor do Papa Vigílio, Pelágio I – quem demonstrou a todos a importância da condenação dos três capítulos – conseguiu-se induzir aos participantes que fizessem o mesmo.

Com isto terminamos de relatar a história do Segundo Concílio de Constantinopla, que foi verdadeiramente emaranhado nas suas “idas e voltas”, mas que não deixa de ser importante para o estudo da “venerável” história da Santa Igreja, pois, nela aprendemos varias lições importantes para guardar, como a forma de agir do mal e como, quando não destruído até as raízes, ele volta a surgir com um requinte de maldade inimaginável.

Por Hernán Luis Cosp Bareiro

BIBLIOGRAFIA

Diccionario de las herejías, errores y cismas. Sociedad de literatos. Madrid: Imprenta de D. José Felix Palacios, 1850.

LLORCA, Bernardino, S.I, Pe. Historia de la Iglesia Católica: edad antigua. Tomo I. Madrid: BAC, 2001.

ORLANDIS, José. El pontificado romano en la historia. Madrid: Palabra, 1996.

ROPS, Daniel. A Igreja dos tempos bárbaros. Tomo II. São Paulo: Quadrante, 1991.

WOHL, Louis de. Fundada sobre rocha: história breve da Igreja. Lisboa: Rei dos livros, 1993.

[1] Tradução nossa .

[2] Cf. LLORCA, 2001 pp.350-353, 580-1, 583.

[3]Tradução nossa .

[4]Textos entre parênteses meus.

[5] Tradução nossa .

[6] Tradução nossa e texto entre parênteses meu texto em itálico do original

[7] Tradução nossa .

[8]Cf. Llorca, 2001, p. 560 e também Rops, 1991, p. 186.

[9]Op. cit. p. 187.

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