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São José de Anchieta, Apóstolo do Brasil

Redação (Quarta-feira, 16-04-2014, Gaudium Press) – Um jovem europeu de 19 anos parte para a recém-descoberta América, onde se depara com uma situação espinhosa. Enfrentando com incrível fortaleza as dificuldades, torna-se um homem do qual hoje se fala com admiração e veneração. Sobre aquele jovem, publicamos hoje uma entrevista com o Padre César Augusto dos Santos. Ela foi realizada em Roma pelo Padre Ramón Ángel Pereira, EP:

Jesuíta, como o Pe. José de Anchieta, bom conhecedor da vida do Santo de cuja causa de canonização foi vice-postulador, o Pe. César Augusto dos Santos nos recebeu na Rádio Vaticano para falar sobre alguns aspectos menos conhecidos da vida do novo Santo.

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Uma primeira pergunta se impõe: Por que demorou 417 anos a canonização do Pe. José de Anchieta?

Devido a diversos problemas. Os jesuítas começaram o processo logo após sua morte, mas, meses depois, o Papa Urbano VIII promulgou um decreto estipulando que nenhum processo de canonização poderia ser aberto antes de 50 anos do falecimento do candidato.

Decorrido esse prazo, retomaram-se os trabalhos. Superando dificuldades ocasionais, inclusive uma nova interrupção, a causa avançou até o momento que para mim é o mais difícil em todo processo de canonização: a declaração das virtudes heroicas do candidato. Nessa etapa se analisa tudo quanto ele escreveu, tudo quanto se fala sobre ele. Nada fica sem ser examinado. Anchieta foi aprovado, recebeu o título de Venerável. Mas aí a Companhia de Jesus foi expulsa de Portugal e do Brasil. Mais: foi supressa na Igreja. Mais 110 anos de paralisação.

Temos, portanto, um processo realmente demorado, mas não uma demora de quatro séculos: descontadas todas essas interrupções devidas a fatores externos, temos uma causa que se prolongou por cerca de 200 anos. Além disso, considere-se que, após cada interrupção, não se reiniciava sem uma prévia análise de tudo quanto fora feito antes. A causa de Anchieta enfrentou todos esses obstáculos.

Qual é o significado de uma canonização sem requerer o milagre prévio?

Precisamos, aqui, fazer uma distinção. A Igreja tem dois caminhos a seguir, nesta matéria. O mais comum é o dos milagres: requer-se um milagre para a beatificação, outro para a canonização. Então, quando se trata de um santo relativamente recente, a Igreja pede esses sinais. O outro meio, que julgava mais difícil, é a canonização equipolente. Este é o caso de Anchieta.

Nesta via de canonização, a Igreja considera a antiguidade e continuidade da devoção. Como vimos acima, a causa de Anchieta tem mais de quatro séculos; apesar de todos os percalços mencionados, ela continuou. Quando os jesuítas retornaram ao Brasil, encontraram a devoção ao Pe. Anchieta firme.sao_jose_de_anchieta.jpg

Outro aspecto a tomar em consideração é a amplitude da devoção. Olhando para a imensidão do Brasil, é inevitável uma interrogação: “Meu Deus! Será possível ele ter devotos em todo esse país de tamanho quase continental?”. Deixei de lado a questão dos milagres e pus-me a pesquisar em São Paulo, nos arquivos da Associação Pró-Canonização de Anchieta – CANAN. Encontrei algo também aqui em Roma. E fiquei boquiaberto ao constatar que em cada estado do Brasil havia pelo menos 50 devotos “multiplicadores”: pessoas que não só rezavam, mas difundiam a devoção, falavam com o padre, distribuíam santinhos, escreviam pedindo relíquia. Dez cartas por mês e uma infinidade de e-mails.

Quais são os traços mais salientes na personalidade de Anchieta, por assim dizer, profética, construindo uma sociedade nova numa terra virgem?

Um marco forte de sua personalidade é a devoção à Virgem Maria e a confiança no seu auxílio. Quando estudante em Coimbra, sentindo que o ambiente na universidade não era muito bom, dirigiu-se à Catedral, pediu a proteção da Mãe de Deus e fez voto de castidade. Nas situações difíceis, recorria sempre a Ela. Vê-se isso anos depois quando, já no Brasil, retido na aldeia de Yperoig como refém dos tamoios e em risco de vida e de romper seu voto de castidade, rezou a Maria e logo começou a agradecer, escrevendo nas areias da praia o poema prometido.

Outra característica dele é o amor por aqueles que vai catequizar. Ele não impôs uma religião aos indígenas. Ele os observou e amou.

Inácio de Loyola apresenta-nos a contemplação das duas bandeiras: a de Cristo, simples, mas cheia de serviços, é a Cruz; a de Satanás, repleta de glórias mundanas, não leva a nada. E Anchieta fez a opção pela bandeira de Jesus Cristo no Brasil, como missionário. Assim, eu vejo nele também esse lado inaciano, o qual é importante observar: a Companhia de Jesus não é do Cristo glorioso, mas do Cristo que carrega a Cruz, que está fazendo a Redenção. Anchieta sentia-se muito companheiro de Jesus, e é exatamente essa a opção que ele fez em Coimbra.

Então, em São José de Anchieta vê-se o devoto de Maria, o jesuíta no sentido inaciano e também, diria eu, um homem de cultura que tem esse respeito pelos índios, aprende a sua língua, vai aprender a medicina indígena com os pajés. Ora, ele é um grande mestre. São Paulo nasce exatamente porque ele é o mestre de Piratininga e as famílias vão morar em torno daquele colégio.

Que comentário lhe sugere o fato de ter ele escrito na areia o famoso poema em louvor de Nossa Senhora?

Anchieta é um homem culto e com uma memória gigantesca. Sem ter livro algum à mão, ele escreveu esse poema de 6 mil versos, demonstrando conhecimentos da Bíblia, dos Padres da Igreja, de tudo. Como aprendeu isso? Provavelmente com os dominicanos de São Cristóvão da Lagoa, na sua adolescência. Em Coimbra também, onde se mostrou aluno dedicado. Sua vasta cultura era tão reconhecida que o Pe. Nóbrega, superior provincial, o colocou no Colégio de Piratininga como professor de seus colegas e até dele próprio. Esse homem abençoado por Deus destacou-se como mestre e como religioso de profunda humildade e grande capacidade de reflexão.

Os jesuítas começaram a formar na América uma civilização, incentivando as qualidades dos indígenas e defendendo-os contra a escravidão. Qual é o papel da autêntica cultura na evangelização?

Esta é uma pergunta muito profunda. Anchieta tinha consciência de sua missão, mas era altamente respeitoso, não impunha. Há uma diferença fundamental entre os missionários e grande parte dos colonizadores do século XVI, portugueses ou espanhóis, que foram para o Novo Mundo conquistar a terra. Anchieta e os jesuítas, apesar de irem para a América portuguesa a pedido do rei Dom João III, têm consciência de que sua missão é uma missão a serviço do Papa para a qual partem imbuídos dessa espiritualidade de Santo Inácio.

Não vão impor o Cristianismo. Vão levar Jesus Cristo, vão evangelizar. Lutam para que o índio seja livre, têm para ele uma palavra amiga, querem batizá-lo. E enfrentam o colonizador português: “Ou mudas de vida ou não te dou a absolvição”. Era uma posição muito diferente, da qual decorreu uma situação tão difícil que eles foram uma vez expulsos de São Paulo, exatamente por serem contrários a essa escravização.

Os jesuítas tinham um modo de agir diferente, que privilegiava a pessoa. Assim, o Pe. Anchieta estudou o idioma indígena e compôs a gramática da língua então mais falada na costa do Brasil, encenou peças teatrais, usou toda a sua cultura como instrumento para a catequese do índio. Agiu também no campo da medicina. Chegou à América sabendo fazer sangria – trouxe o seu canivetinho… -, mas observou que os pajés usavam raízes, folhas e argila, e dava certo! Aprendeu, então a empregar também esses recursos. Ou seja, ele era mestre, mas procurava aprender, assumia também uma posição de discípulo. Isso denota grandeza.entrevista_padre_cesar_augusto_dos_santos2.JPG

Agora, quando perceberam a impossibilidade de impedir os portugueses de caçarem índios para escravizá-los, os jesuítas tiveram a ideia de reuni-los em aldeias. Nasceram assim os Aldeamentos. Foi uma coisa boa? Sim, mas perigosa e com uma falha. Por um lado, eles protegiam os índios, e até facilitavam a catequese; por outro, porém, os indígenas perdiam a cultura da respectiva tribo, e inclusive anulava-se a liderança do cacique. Então, foi uma atitude muito boa dos missionários, mas acarretou essas consequências. Com nossos conhecimentos de antropologia e de sociologia, hoje vemos isso, mas os jesuítas de então não percebiam.

Pode dizer algo sobre seus numerosos milagres?

Vejamos alguns desses milagres, feitos com o objetivo de ajudar os outros. Certo dia, ele encontrou um menino índio com uma feia ferida no rosto, talvez um câncer de pele. Anchieta obteve sua pronta cura rezando sobre ele palavras do Evangelho. Noutra ocasião, estava na praia de Bertioga quando viu uma baleia começar a “brincar” com uma canoa que se encontrava em lugar perigoso, pondo os tripulantes em risco de vida. O santo, então, ordenou ao cetáceo: “Vai embora!”. E este obedeceu. Também a natureza dobrava-se ao poder de suas orações. Na hora prevista para a encenação de uma peça teatral catequética ao ar livre, toldou-se o horizonte de pesadas nuvens, sinal de muita chuva. Só Anchieta não se preocupava: “Não vai chover!”. E assim aconteceu. Quando terminou a peça e todos tiveram tempo para chegar à respectiva casa… desabou o temporal.

Dou agora meu testemunho pessoal: ele é grande intercessor junto de Deus! Quando preciso, rezo a ele e obtenho o que peço. Muito tranquilo, Anchieta escuta o pedido e o leva a Deus. E Deus o atende.

Ele chegou ao Brasil com apenas 19 anos de idade. Que mensagem traz esse fato para a juventude brasileira?

Veja, um europeu de 19 anos, culto, de boa família, fez sua opção por um ideal. Partiu para o Brasil, onde se deparou com uma situação pior do que imaginava. Subiu de batina a Serra do Mar, enfrentando chuva, cobras, insetos, obrigado a andar de gatinhas em certos trechos. E era de saúde débil!… Esse jovem tirou de dentro de si uma força incrível e se tornou o homem do qual hoje, transcorridos mais de quatro séculos, se fala com admiração e veneração. E o Papa o colocou como modelo para todo o mundo.

Qual o segredo desse jovem? Ele era homem como todos nós. Porém, com sua grande fé em Deus, sua grande fé em Maria, sabia que esse poder não era dele, mas vinha de Deus.

Então, sua mensagem para o jovem de hoje é: Enfrente os desafios! Não fuja! Os desafios estão aí para serem vencidos, e a força está dentro de você. Confie em Deus, confie em Maria e vá adiante!

Padre César Augusto dos Santos, SJ

Nascido em 1945, em Barra do Piraí (RJ), e ordenado sacerdote em 1975, o Pe. César Augusto dos Santos, SJ, é Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Mestre em Brasil Colonial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mora atualmente em Roma, onde é responsável pela programação brasileira da Rádio Vaticano.

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