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A escada da arquetipia

Redação (Sexta-feira, 17-03-2017, Gaudium Press) Para ascender à cúpula da Basílica de São Pedro, faz-se necessário o uso de uma escada. A forma curva do monumento impede a implementação de elevadores ou outros avanços da técnica. A cada um dos mais de duzentos degraus, quem vai subindo sente, ao mesmo tempo, o peso do cansaço e o alento da esperança: “Como será o panorama lá de cima?” No fim da árdua empresa, o prêmio compensa os esforços: a ampla visão regala os olhos.

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São José com o Menino Jesus
Museu de Arte, Lima

Também Deus nosso Senhor, o pedagogo infinitamente sábio, leva os homens aos mais altos mistérios da Fé por meio de certos “degraus” por Ele estabelecidos, de modo a facilitar a ascensão. Assim, antes da vinda do Messias, Javé multiplicou os sinais, os símbolos e as pré-figuras d’Ele. Pensemos no cordeiro imolado no culto mosaico e sua ligação emblemática com o Sacrifício do Calvário. O próprio Jesus foi chamado por São João Batista de “Cordeiro de Deus”.

De maneira análoga, os privilégios de Nossa Senhora foram representados por grandes personagens do Antigo Testamento: Maria, a irmã de Moisés, Judith, Esther, Dé- bora e tantas outras. Cada uma delas, sob algum aspecto, foi depositaria num grau menor das perfeições que enriqueceriam de modo indizível a Virgem Mãe, estando em relação a Ela como tipos para com o arquétipo. A Mãe de Deus, bendita entre as mulheres, reúne em Si e requinta as perfeições dessas eminentes damas que a precederam.

Do mesmo modo, para abrir nossos corações ao mistério da santidade de São José, esposo de Maria e pai legal de Jesus Cristo, encontramos na Antiga Aliança uma pré-figura atraentíssima e cheia de virtudes: José do Egito, filho de Jacó.1 Ele foi modelo do varão perfeito es- colhido por Deus para uma missão de enormes proporções, como foi São José, filho de Davi.

Analisemos e confrontemos ambos os patriarcas, admirando e adorando a sabedoria e a força de Deus que os santificou e glorificou dessa maneira.

O Senhor mostra sua predileção pelo filho de Jacó

“Israel amava José mais do que todos os outros filhos, porque ele era o filho de sua velhice; e mandara-lhe fazer uma túnica de várias cores” (Gn 37, 3). Sendo filho de Raquel, e tendo nascido dela depois de um longo período de esterilidade, o afeto de Jacó por seu filho José era tenro e intenso. Vestia-o com uma elegância e um luxo superior à dos outros irmãos e eles, ao perceberem esses sentimentos paternos, passaram a nutrir uma obscura e sórdida inveja: “Vendo que seu pai o preferia a eles, conceberam ódio contra ele e não podiam mais tratá-lo com bons modos” (Gn 37, 4).

Todavia, a predileção que mais honrou a José foi a do próprio Deus. Ele, com efeito, revelou-lhe sua preeminência futura sobre toda a família:

“Ora, José teve um sonho, e o contou aos seus irmãos, que o detestaram ainda mais. ‘Ouvi, disse-lhes ele, o sonho que tive: estávamos ligando feixes no campo, e eis que o meu feixe se levantou e se pôs de pé, enquanto os vossos o cercavam e se prostravam diante dele’. Seus ir- mãos disseram-lhe: ‘Quererias, porventura, reinar sobre nós e tornar-te nosso senhor?’ E odiaram-no ainda mais por causa de seus sonhos e de suas palavras. José teve ainda outro sonho, que contou aos seus irmãos. ‘Tive, disse ele, ainda um sonho: o sol, a lua e onze estrelas prostravam-se diante de mim’. Ele contou isso ao seu pai e aos seus irmãos, mas foi repreendido por seu pai: ‘Que significa, disse-lhe ele, este sonho que tiveste? Viremos, por- ventura, eu, tua mãe e teus ir- mãos, a nos prostrar por terra diante de ti?’ Seus irmãos ficaram, pois, com inveja dele, mas seu pai guardou a lembrança desse acontecimento” (Gn 37, 5-11).

Os vaticínios do menino cumprir-se-iam à risca, como a História nos mostrará. Depois de muitas aventuras, José chegará a ser o homem de confiança do faraó do Egito, e sua família para lá se trasladará, sob seu cuidado e proteção. A cena dos astros que diante dele se prostram se realizará conforme havia sido previsto naquela noite. Foi ele chamado a salvar o povo eleito e a guiá-lo numa situação de carestia que podia tê-lo exterminado. Graças à sua disposição, porém, as tribos de Jacó puderam crescer e multiplicar-se, dando origem a uma nação numerosa.

Um varão escolhido por Deus para esposo de Maria

São José, esposo de Maria, foi também muito amado pela Providência. Contudo, sua vocação era muito mais alta que a de seu homônimo do Egito. A ele foi confiado o cuidado do próprio Filho de Deus e de sua Mãe Santíssima, sendo assim galardoado com a maior prova de confiança que Deus outorgou a um homem em toda a História da humanidade.

Ao caber a ele o papel de pai na Sagrada Família, de alguma forma a presidiu, recebendo por esse motivo a homenagem e a obediência do Rei dos reis e da Rainha dos Anjos. Com efeito, o fruto concebido mediante um milagre no seio virginal de Maria foi confiado a São José na qualidade de filho, como o in- dica a ordem dada pelo Anjo de impor-Lhe o nome: “Ela dará à luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus, porque Ele salvará o seu povo de seus peca- dos” (Mt 1, 21). E eis que o Padre Eterno, por quem o Verbo é gerado no seio da Trindade, confia seu Filho amadíssimo nas mãos deste homem justo, para que O custodie, O eduque e O sustente. Ou seja, José fez as vezes, na terra, do próprio Pai do Céu, ao lado do Filho encarnado. Maior signo de predileção é difícil achar, a não ser na predestinação de Maria.

Sirva esta consideração para aumentar nossa confiança no patrocínio do glorioso Patriarca, tão bem-amado e escolhido por Deus. Recorramos confiantes a São José certos de seu poder de intercessão, pois no Céu, em certa medida, os sentimentos de afeto e reverência de Jesus em relação a seu pai da terra continuam por toda a eternidade.

Preso por não ter querido manchar sua pureza

Dentre as virtudes mais eminentes de José, filho de Jacó, desponta a pureza. Desde a juventude, prezava ele os costumes honestos e, como narram as Escrituras, aborrecia os temas licenciosos: “José, ainda jovem, com a idade de dezessete anos, apascentava o rebanho com seus ir- mãos, os filhos de Bala e os filhos de Zelfa, mulheres de seu pai; e ele contou ao seu pai as más conversas dos irmãos” (Gn 37, 2).

Em meio a intrincadas peripécias, depois de ter sido vendido como es- cravo pelos próprios irmãos, José foi levado ao Egito e comprado por Putifar, chefe da guarda do faraó. Na casa de seu senhor, José conquistou-lhe a confiança pela retidão de seus costumes, pela sabedoria com que administrava os bens e pela bênção de Deus que pairava sobre ele, favorecendo-o em tudo. Porém, uma nuvem negra e suja iria toldar-lhe o horizonte.

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O rosto do escravo era belo, o que suscitou sentimentos ignóbeis na es- posa de seu amo: “E aconteceu, de- pois de tudo isto, que a mulher de seu senhor lançou seus olhos em José e disse-lhe: ‘Dorme comigo'” (Gn 39, 7). A recusa do casto José denota uma retidão e um temor de Deus heroicos: “Meu senhor, disse-lhe ele, não me pede conta alguma do que se faz na casa, e confiou-me todos os seus bens. Não há maior do que eu nesta casa; ele nada me interdisse, exceto tu, que és sua mulher. Como poderia eu cometer um tão grande crime e pecar contra Deus?” (Gn 39, 8-9).

Longe de admirar tanta pureza, o coração da infiel, obscurecido pela virulência das paixões, recusou os argumentos apresentados por José e continuou a tentá-lo ainda por muitos dias. Em determinada ocasião, a mulher indigna, açodada por suas péssimas intenções, agiu de forma violenta: “Tendo ele entrado na casa para fazer seus serviços, e não se encontrando ali ninguém da casa, ela segurou-o pelo manto, dizendo: ‘Dorme comigo!’ Mas José, largando-lhe o manto nas mãos, fugiu” (Gn 39, 11-12).

Cheia de ódio e vingança por não poder satisfazer seus anseios, decidiu espalhar uma sórdida calúnia: “Vendo a mulher que ele lhe tinha deixado o manto nas mãos e fugido, chamou a gente de sua casa e disse-lhes: ‘Vede: trouxeram-nos este hebreu para a casa a fim de que ele abuse de nós. Este homem veio-me procurar para dormir comigo, mas eu gritei. E vendo que eu me punha a gritar, deixou seu manto ao meu lado e fugiu” (Gn 39, 13-15).

A sorte de José foi terrível. Putifar deu crédito às mentiras maldosas e o lançou na prisão: à posição de destaque que até então ocupava seguiu-se, por causa do heroico ato de fidelidade, a úmida escuridão da masmorra. Mas, como narra a seguir a Sagrada Escritura, também lá a mão de Deus não o abandonaria, mostrando-lhe seu favor em meio ao infortúnio. Finalmente, terminará ele elevado ao cargo de maior confiança do rei do Egito.

Exímia virgindade do custódio de Cristo

A virtude da castidade refulgiu em José com uma luz especialíssima, digna de prefigurar a virgindade pu- ríssima e viril de São José, esposo de Maria e custódio de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Durante algum tempo e entre vários autores grassou o erro ino- culado pelos apócrifos de Tiago e Pedro, que atribuem a São José a paternidade direta dos “irmãos” do Senhor, citados nos Evangelhos.

Porém, a Tradição da Igreja foi proclamando com voz universal e sempre mais alta a virgindade perpétua de São José. O primeiro paladino dela foi São Jerônimo, que enfrentou o herege Helvídio, mostrando-lhe que o verdadeiro parentesco de Cristo com tais “irmãos” consiste em certa consanguinidade de segundo ou terceiro grau, o que, aliás, é hoje moeda corrente entre os exegetas.
Seguem seus passos Santo Agostinho, Teodoreto, São Beda e São Ruperto, dentre outros. Porém São Pedro Damião afirma com a força e a rutilância de um toque de clarim: “É fé da Igreja que aquele que fez as vezes de pai foi virgem também”.2 São Tomás3 fará eco dessa genuína tradição, e aportará uma sublime razão teológica: “Se o Senhor [no alto da Cruz] quis encomendar ao [discípulo] virgem o cuidado da Virgem, sua Mãe, como teria [Ela] convivido com seu esposo, se ele não ti- vesse sido sempre virgem?”4

Portanto, podemos crer, em união com a Igreja, Esposa imaculada e santa do Cordeiro Divino, que São José, honrado pelos homens com o título de pai de Jesus Cristo, foi virgem durante toda sua vida, e de uma pureza única na Igreja.
A admirável tranquilidade emanada da despretensão

Se consideramos a natural inclinação do homem ao casamento e à preservação da espécie, se lembramos os esforços dos grandes Santos para manter íntegra sua castidade, e se constatamos quantos homens se deixam arrastar pela veemência das paixões, ao contemplar São José nos admira o altíssimo grau de sua pureza, sua virgindade exímia, sua caridade e contemplação ardentíssimas, que o levaram conviver com sua es- posa sem experimentar a mínima inclinação carnal. Tudo nele, pelo contrário, movia-o a extasiar-se com sua virtude eminente, sua santidade ímpar e sua divina beleza.

Entende-se assim, quão terrível foi a provação experimentada por ele ao constatar a maternidade de Maria e quão singulares as causas que o levaram a querer abandoná-La ao perceber os sinais evidentes da gravidez. Homem justo e de humildade profunda, considera-se in- digno de participar de um tão alto mistério, e decide retirar-se em se- gredo.5

Com efeito, pureza e humildade são indissociáveis. É impossível manter a continência do corpo se na alma reina a vaidade e a presunção. Assim, encontramos mais uma faceta da alma de São José: a tranquilidade da despretensão. Ele decide retirar-se, mas não sem antes descansar. Naquela difícil situ- ação, com a dilacerante separação em vista – que significaria não poder mais contemplar o luminosíssimo olhar de Maria! – o varão justo resolve repousar. Nossa Senhora percebe sua provação e reza por ele. E eis que um Anjo lhe aparece em sonhos: “José, filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque Ela concebeu pela ação do Espírito Santo” (Mt 1, 20).

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Mons. João Scognamiglio Clá Dias assim comenta essa passagem: “Diferentemente do que [ele] pensava, estava, sim, à altura de sua celestial es- posa, tornando-se um dos primeiros a conhecer o mistério sagrado da Encarnação do Verbo”.6

Qual não terá sido a intensa e temperante alegria de São José ao acordar depois de tal revelação? Mais ainda, além de presenciar, ele pôde tomar parte ativa, impondo o nome ao próprio Filho de Deus… Belo prêmio de sua virgindade puríssima, como bem o descreve Santo Agostinho: “Quando Lucas refere que Cristo nasceu da Virgem Maria e não do contato com José, por que o chama pai, senão por ser, como entendemos retamente, esposo de Maria, não pela união carnal, mas pelo pacto conjugal? Por isso é certamente pai de Cristo muito mais íntimo, pelo fato de Ele ter-lhe nascido de sua esposa, que se O tivesse adotado”.7
Terá sido concebido sem pecado original?

Fazer as vezes de pai do Homem-Deus na terra e ser esposo da Rainha dos Anjos… Não poderia ha- ver maior dignidade! Estar ao lado da fonte de toda a pureza e conviver com a medianeira das graças trazidos ao mundo com a Redenção: é impossível imaginar um dom mais alto, um benefício mais nobre e dignificante!

São José não poderia ter sido de outro modo. A grandeza da sua vocação chamava-o a ter a maior intimidade com Jesus e Maria, e isso exigia dele uma tal perfeição, que não se pode conceber nele o mínimo deslize. É por isso que o mesmo Mons. João Scognamiglio Clá Dias levanta uma audaz, belíssima e plausível hipótese: a da sua preservação da mancha e das inclinações más, frutos do pecado de Adão e Eva. “Ao considerarmos, admirados, a figura de São José e a elevação inimaginável de sua vocação – a ponto de ser impossível cogitar outra mais alta -, vemos que ele está tão acima da nossa condição que o julgamos na mesma pro- porção de Maria. Cabe, pois, perguntar: acaso foi ele concebido sem pecado original? Até hoje o Magistério da Igreja não afirmou o contrário de maneira definitiva, razão pela qual podem ser feitas considerações teológicas favoráveis a tal hipótese”.8
Dois varões castos elevados aos mais altos patamares

Ao longo destas linhas, consideramos a grandeza de dois varões castos elevados pela sua pureza aos mais altos patamares da dignidade. José do Egito termina por ser o homem mais influente do enorme império dos faraós; São José recebe em tutela os tesouros mais aprecia- dos de Deus Pai: seu Filho encarnado e Maria Santíssima! O José da Antiga Aliança é pré-figura do pai virgem de Cristo.

Oração a São José

Certamente o admira e reverencia no Céu, pedindo-lhe que seja protetor vitorioso daqueles que lutam para manter seus corações livres da sórdida escravidão da impureza. Pela sua poderosíssima intercessão diante do Filho que quis obedecer-lhe na infância, ele é amparo seguro dos que caem e querem reerguer-se, ao mesmo tempo que desperta as consciências dos que se abandonam aos braços suaves e cruéis dos mentirosos deleites de uma vida licenciosa.

Uma coisa é segura: futuramente a figura de São José será considerada, sempre mais, como o cavaleiro glorioso da virgindade, modelo fulgurante da castidade masculina, amparo eficaz de todos os que amam a inocência e combatem a impureza. ²

Por Carlos Javier Werner Benjumea, EP

 

1 A Tradição refere a São José a tipologia de José do Egito, pelo seu grande poder diante do faraó, de modo a lograr assim a abundância de dons, o que evoca o poderoso patrocínio de São José para que nunca falte o pão da Palavra e da Eucaristia à Igreja
(cf. FERRER ARELLANO, Joaquín. San José, nuestro padre
y señor. Madrid: Arca de la Alianza, 2006, p.25).

2 SÃO PEDRO DAMIÃO. Opusculum XVII. De cælibatu sacerdotum, c.3: PL 145, 384. “Ecclesiæ fides est, ut virgo fuerit et is qui simulatus est pater”.

3 São Tomás não só afirma a virgindade perpétua de São José, mas rejeita como sendo doutrina que a Igreja não sustenta e falsa, a que lhe atribui filhos de outro matrimônio
anterior ao contraído com Maria Santíssima (cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Evangelium Sancti Ioannis lectura, c.II, lect.2; Super Epistolam ad Galatas lectura, c.I, lect.5).

4 SÃO TOMÁS DE AQUINO, Super Epistolam ad Galatas lectura, op. cit. “Si Dominus Matrem Virginem noluit nisi virgini commendare custodiendam, quomodo sustinuisset sponsum eius, virginem non fuisse, et sic perstitiss”.

5 Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O inédito sobre os
Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2013, v.VII, p.46-47.

6 Idem, p.46.

7 SANTO AGOSTINHO. De consensu Evangelistarum. L.II, c.1, n.3: PL 34, 1072.

8 CLÁ DIAS, op. cit., p.54.

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