Gaudium news > O Céu: recompensa somente para a alma?

O Céu: recompensa somente para a alma?

Redação (Quinta-feira, 09-11-2017, Gaudium Press) Se o homem serviu a Deus com todo o seu ser, sofreu por Ele em corpo e alma, com suas faculdades espirituais e sentidos corporais, é justo que a recompensa se estenda também ao corpo, já ressurrecto.

-Nos remotos tempos das aulas de catecismo aprendemos que após as agruras desta vida receberemos no Céu, se morrermos na graça de Deus, um prêmio absolutamente superior a qualquer cogitação. Disto não temos a menor dúvida, pois é bem clara a doutrina da Igreja. Entretanto, como será tal galardão?

Pouco nos esclarecem as Escrituras Sagradas a respeito. São Paulo chegou a prelibá-lo, mas, sentindo a impossibilidade de exprimi-lo em linguagem humana, limitou-se a repetir o profeta Isaías: “Coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que O amam” (I Cor 2, 9). E algum tempo depois acrescentou: “Conheço um homem em Cristo que há catorze anos foi arrebatado até o terceiro Céu […] e lá ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir” (II Cor 12, 2.4).

As enigmáticas palavras do Apóstolo avivam o nosso anseio de saber mais acerca das alegrias celestes. Não obstante, por ignorar em que elas consistem, podemos ficar com uma impressão muito diminuída do Paraíso.

Corpo e alma: unidade substancial

Por ser composto de alma, elemento espiritual, e corpo, elemento material, enquanto há vida nesta terra ambos são inseparáveis no ser humano, conformando uma unidade substancial. Se sentimos dor ou prazer, tristeza ou alegria, é atingida a pessoa inteira.

Uma grande decepção ou uma excelente notícia afetam primordialmente à alma, todavia repercutem também no corpo. A intensa dor provocada por uma fratura óssea não deixa de ser sentida pela alma. E uma ótima refeição causa regozijo no espírito, levando o salmista a afirmar que o vinho “alegra o coração do homem” (Sl 103, 15) e o sábio a dizer que “o vinho e a música alegram o coração” (Eclo 40, 20).

Ora, se o homem é desta forma atingido no seu todo na vida terrena, o mesmo precisa acontecer de alguma maneira na eternidade. Depois da ressurreição dos corpos e do tremendo Juízo Final, os justos ascenderão em corpo e alma ao Céu e os precitos se precipitarão no inferno, também em alma e corpo.

Pesquisa de um conceituado teólogo

Cremos, portanto, que os corpos ressurrectos dos justos, já gloriosos, deverão participar da felicidade de suas almas no Céu. Inclusive porque, conforme bem argumenta Santo Agostinho, a bem-aventurança é “a plenitude de todos os bens desejáveis”.1

A pergunta, porém, permanece: como se dará isso?

O Pe. Luís Brémond, teólogo francês do início do século passado, analisou à luz da Fé tal plenitude e, fundamentando-se na Revelação e em grandes autores e doutores, publicou uma sugestiva obra intitulada O Céu. Suas alegrias, seus esplendores.
Selecionamos aqui algumas interessantes considerações, resultado de sua pesquisa, as quais nos proporcionam uma prelibação da felicidade celeste, a começar pela maneira como lá se é recebido.

Glória e esplendor dos corpos no Céu

“A chegada de uma alma santa na celestial morada” – explica o Pe. Brémond – “produz entre os seus felizes habitantes uma alegria especial. A milícia celeste vai toda ao seu encontro e a recebe com arroubos de alegria, narrando tudo quanto ela empreendeu de glorioso na terra, e glorificando a Deus por esses feitos”.2

Todos os Bem-aventurados estarão revestidos de esplendor e ornados de uma coroa de glória eterna. A luminosidade pessoal de cada um deles é um jorro da glória da alma sobre o corpo.

Se ainda estando aqui no exílio, nos momentos de grande emoção a alma transfigura a fisionomia do homem, quanto mais o corpo glorioso será marcado pelo prêmio eterno, como assevera o Doutor Angélico: “Conforme a maior claridade da alma, por causa do seu maior mérito, assim diferirá essa claridade da do corpo, como diz o Apóstolo. E assim, pelo corpo glorioso se conhecerá a glória da alma, assim como através de um vaso de vidro vemos a cor do corpo nele contido, como diz Gregório, comentando aquilo de Jó: ‘Não lhe igualará o ouro nem o cristal'”.3

Por isso, assegura o Pe. Brémond, “a beleza dos corpos ressuscitados, proporcional aos méritos, constituirá uma marca característica da santidade dos eleitos; um brilho particular será a recompensa dos membros que mais tiverem sofrido pela glória de Deus”.4

Mesmo nesta vida terrena, continua ele, encontramos por vezes, nos Santos, analogias e antecipações da glória futura da qual usufruirão ¬nossos corpos: da luz interna derramada pelo Espírito Santo em sua alma desprende-se um raio esplendoroso que lhe envolve o corpo.

Exemplo disto foi Moisés ao descer do Monte Sinai, onde passara quarenta dias em convívio com Deus: os filhos de Israel notaram que a pele de seu rosto se tornara brilhante e não ousaram aproximar-se (cf. Ex 34, 29-30). Ou São João de Deus que, depois de uma aparição de Nosso Senhor Jesus Cristo, permaneceu por algum tempo envolto por tal foco de luz que os doentes do hospital no qual ele se encontrava puseram-se a gritar: “Fogo! Fogo! Incêndio no hospital!”,5 conta nosso autor.

Os sentidos se deleitarão com prazeres inefáveis

O corpo dos eleitos terá seus regozijos próprios e respectivos, além dos da alma. Se o homem inteiro, em todo o seu ser, serviu a Deus, sofreu por Ele com seus sentidos corporais, é justo, pois, que a recompensa se estenda a eles, como às faculdades da alma.
Leonardo Lessius, famoso teólogo jesuíta, recorda que “se cada sentido é capaz de uma perfeição suprema em seu gênero, o que constitui sua felicidade específica, por que não poderiam ter realmente na Pátria, com facilidade e sem inconvenientes, sua bem-aventurança? A alma não é apenas racional, mas também sensitiva, e é capaz de ¬deleitação e bem-aventurança sob estes dois aspectos. Deve ela, portanto, ser feliz em sua parte racional, pela gaudiosa visão de Deus, e na parte sensitiva, pela perfeição dos objetos sensíveis mais notáveis, acomodados aos diversos sentidos”.6

Assim, cada sentido do corpo se deleitará para sempre com prazeres inefáveis, como explica São Lourenço Justiniano.7 Ele afirma que a Ressurreição de Cristo elevou a natureza humana à sua plenitude. Desta forma, no Céu, a carne espiritualizada dos eleitos superabundará, em todos os seus sentidos, de todo gênero de delícias. Seus olhos se regozijarão com o aspecto cativante do Redentor; cânticos melodiosos extasiarão seus ouvidos; a suavidade penetrante dos excelentes perfumes celestes sensibilizará seu olfato; uma doçura das mais requintadas, saborosas e refinadas inundará seu paladar; enfim, o próprio tato sentirá, a seu modo, os castos prazeres dos quais falam aqueles que já os experimentaram.

E o Pe. Brémond acrescenta que “acontecerá com os sentidos o mesmo que com a visão beatífica: todos desfrutarão das criaturas preparadas por Deus para deleitar os sentidos de seus filhos, mas a medida desta fruição será proporcional aos méritos pessoais de cada um dos eleitos”.8 Afinal, indaga ele, “não será justo que receba no Céu uma recompensa especial o cristão que se mortificou no beber e no comer? Tendo o sentido do gosto participado dos sofrimentos da alma nesta terra, não será justo que ele tenha sua parte nos regozijos celestes?”9

Conclui então nosso autor que o corpo, que hoje parece pesar à alma, será para ela uma fonte de gozo quando se tornar glorioso, com a ressurreição da carne.10

Atrativos dos justos e de Deus

Ademais, como nada no Céu se repete, cada justo terá encantos em sua pessoa com “um traço particular e característico, que será fruto de uma virtude específica sua, ou de uma virtude comum a vários outros, porém matizada pelos méritos individuais. Aliás, acrescentando a pura gratuidade ao mérito, Deus tirará do tesouro de suas perfeições, em proveito de cada eleito, uma graça e um charme que em nada se parecerão aos encantos e atrativos de qualquer outro”,11 tornando agradabilíssimo o convívio entre todos.

Se assim será o relacionamento entre os Bem-aventurados, quanto mais atraente será a contemplação do próprio Deus, uma vez que, segundo o Pe. Brémond fundado em São Jerônimo, “após a ressurreição, Ele mostrará aos eleitos, com maior magnificência, sua própria bondade”.12

Por conseguinte, não se pode conceber tédio no Céu. O desejo do gozo da Verdade, Bondade e Beleza infinita levará os Santos a mergulharem num “oceano do amor: o homem nele avança de arrebatamento em arrebatamento; e este amor é Deus, sempre Deus. É o oceano da alegria, no qual o homem adentra, submergindo de inebriamento em inebriamento; mas este arroubo é Deus, sempre Deus! Nada mais existe além disto: aí está tudo quanto se pode ver, possuir, saborear; aí o homem se detém e ao mesmo tempo se move”.13

Por todas estas considerações, não nos resta senão dizer que no Céu, de fato, receberemos uma “recompensa demasiadamente grande” (Gn 15, 1)! Com razão exorta o Pe. Brémond: “A vida presente é atravessada por mil tormentos, para nos fazer elevar mais nossas afeições. E nós, insensatos que somos, abraçamos os prazeres efêmeros como se não tivéssemos nascido para uma glória eterna. E como se quiséssemos ser felizes contra o desígnio de nosso Criador, tomamos uma estrada contrária àquela que Ele nos prescreve para encontrar a felicidade. Amemos, portanto, o único Bem, que contém todos os bens, e basta. No Céu é que estão os bens da alma e, após a ressurreição, também os do corpo”.14 ?

Por Ir. Guy Gabriel de Ridder, EP
………………………………………………………….

1 SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.V, Præfatio. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI, p.331.
2 BRÉMOND, Louis. Le Ciel. Ses joies, ses splendeurs. Paris: P. Lethielleux, 1925, p.258.
3 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Suppl., q.85, a.1.
4 BRÉMOND, op. cit., p.144.
5 Idem, p.145.
6 LESSIUS, SJ, Leonardo. De Summo Bono et æterna beatitudine hominis. L.III, c.8, n.96. In: Opuscula varia. Venetiis: Andream Baba, 1625, p.74.
7 Cf. SÃO LOURENÇO JUSTINIANO. De disciplina et perfectione monasticæ conversationis, c.XXIII. In: Opera Omnia. Venetiis: Baptista Albritius & Joseph Rosa, 1751, t.I, p.159-160.
8 BRÉMOND, op. cit., p.161.
9 Idem, p.165.
10 Cf. Idem, p.263.
11 Idem, p.213.
12 Idem, p.263.
13 Idem, p.276.
14 Idem, p.278.

 

 

Deixe seu comentário

Notícias Relacionadas