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A bem-aventurada pobreza de espírito

Redação (Segunda-feira, 25-02-2019, Gaudium Press) Se compreendermos o verdadeiro significado do que é ser pobre de espírito, entenderemos melhor a bem-aventurança que dele decorre: a posse do Reino dos Céus.

Conta-se que o visconde de Turenne, quando tinha apenas sete anos, desapareceu de casa. O pai pôs-se a procurá-lo e o encontrou reclinado aos pés de um canhão. Querendo assustá-lo, talvez para reparar o sobressalto que dera na família, gritou-lhe:

– Cuidado, inimigo!

E para sua surpresa, o pequeno, pondo-se de pé com uma prontidão única, replicou:

– Onde está, para que eu possa combatê-lo?!

Era um homem de valor e, ainda que em potencial, já revelava o que seria no futuro: destemido general das tropas de Luís XIII e XIV, nomeado Marechal de França.

“A vida do homem sobre a Terra é uma luta”

Este fato ilustra qual deve ser o estado de ânimo do homem em sua passagem por este mundo: sempre disposto à luta, da qual ninguém escapa, como tão bem expressou Jó, ao sorver da taça amarga do sofrimento: “a vida do homem sobre a Terra é uma luta” (Jó 7, 1)!

Se há luta, é porque há inimigos, e estes existem em abundância… Não precisamos ir muito longe para procurá-los, basta olharmos em nosso interior e logo percebermos as misérias herdadas do pecado original: um verdadeiro campo de guerra, no qual travamos nossas mais árduas batalhas. E nossas más inclinações olham-nos, como a nos dizer:

– Ao combate! Ou tu lutas ou te tragamos!

E começa o doloroso percurso da vida.

Perfeição dos conselhos evangélicos

Ensina-nos a teologia que os principais inimigos do homem são, além das más tendências da carne, o demônio e o mundo. Contra fortes inimigos, tal seria que Deus não prodigalizasse forte amparo e proteção: a graça, que é dada a todos os que O buscam retamente, em especial aos batizados, a fim de que alcancem a salvação.

Algumas almas, porém, são chamadas a um estado de vida ainda mais perfeito: a vida religiosa. Os conselhos evangélicos, assumidos pelos votos de castidade, pobreza e obediência, são preciosos auxílios pelos quais o homem se subtrai radicalmente da herança do pecado, para se tornar digno herdeiro do Reino dos Céus.

Pensemos, por exemplo, na pobreza religiosa enquanto lenitivo das paixões que nos prendem aos bens terrenos, e tentemos aplicar os princípios de sabedoria contidos neste conselho evangélico a todos os que foram chamados a viver no século, pois as bem-aventuranças, ensinadas por Jesus no Sermão da Montanha, valem para todos: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5, 3).

A prática da pobreza: na Religião e no século

O voto de pobreza obriga o religioso a três coisas fundamentais. Analisemos cada uma delas e vejamos se também podem ser aplicadas ao comum dos fiéis.

1ª “Não possuir absolutamente nada como próprio”.

Para melhor entender o sentido mais profundo desta norma, apliquemo-la aos bens espirituais através de um breve exame de consciência: quantas vezes nos apropriamos dos dons que Deus nos deu? Inteligência, aptidões, capacidades…

Entretanto estas qualidades não nos pertencem. Foram-nos dadas para, no desenvolvimento delas, crescermos na fé e ajudarmos os outros alcançarem o Céu. A mesma razão existente para um religioso se desprender dos bens temporais e espirituais vale para qualquer fiel se desapegar dos dons com que Deus o ornou para melhor servi-Lo.

2ª “Não dispor absolutamente de nada sem autorização”.

A partir desta norma para os que abraçaram a via da perfeição, bem cabe outra aplicação geral: se um religioso incorre no pecado de roubo quando faz uso de um objeto sem autorização, todo homem incorre na mesma falta ao aplicar suas virtudes e habilidades com fins espúrios ou até mesmo ao utilizar-se delas para projetar-se diante dos outros.

Não devemos dispor de nossas qualidades visando a glória mundana! Façamos tudo só para Deus, “para que Ele vos exalte no tempo oportuno” (I Pd 5, 6), se a obra feita, de fato, mereçeu o louvor.

3ª “Viver pobremente, a exemplo do Divino Pobre, Jesus Cristo”.

Nosso Senhor Jesus Cristo – que “sendo rico, Se fez pobre por vós, a fim de vos enriquecer por sua pobreza” (II Cor 8, 9) – convida-nos a todo instante a não mergulharmos no apreço desmesurado pelas coisas terrenas, e disto deu-nos exemplo com sua vida: escolheu para nascer não um rico palácio, senão uma simples gruta; tampouco escolheu uma cidade importante para vir à luz, preferindo os arredores de Belém; e só manifestou sua divindade depois de trinta anos de vida oculta.

Quando os fariseus O desprezavam no Sinédrio ou O difamavam, Ele não Se incomodava por tentarem tirar-Lhe a glória diante do povo; mas ao ser elogiado, remetia ao Pai. E no momento da morte não temeu o ignominioso castigo da Cruz: derramou até a última gota de seu preciosíssimo Sangue e não Se apegou ao seu maior tesouro, Maria Santíssima, legando-A ao Discípulo Amado.

Sublime aspecto da pobreza

Levando tudo às últimas consequências, o Redentor cumpriu sua missão: estavam vencidos o demônio, o mundo e a carne, e restabelecido para o homem o reino da graça!

E nós, o que oferecemos a Nosso Senhor? Somos capazes de nos desprendermos inteiramente das coisas fúteis para abraçarmos esta via da graça, do sobrenatural? Cuidemos, portanto, para não nos apegarmos às coisas da Terra que nos desviam das coisas de Deus.

Ouçamos a voz do Divino Mestre que sussurra em nosso interior: “Filho, a minha graça é um dom precioso, que não sofre mistura de coisas estranhas nem consolações mundanas. […] Pois não podes, ao mesmo tempo, tratar comigo e deleitar-te nas coisas transitórias”.

Não desanimemos! Se é verdade que os inimigos estão próximos de nós para nos derrotar na luta pela salvação, fazendo-nos ser apegados à coisas do tempo e roubando-nos a eternidade, é também verdade que os tesouros e as verdadeiras riquezas residem no interior de nossa alma, desde que nunca a maculemos. Pois, ainda que tenhamos “este tesouro em vasos de barro” (II Cor 4, 7), não nos esqueçamos de que “tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fl 4, 13).

Assim entenderemos o sublime aspecto da pobreza que caracteriza a verdadeira riqueza: abandonarmos o nada, para possuirmos tudo, ou seja, a bem-aventurança do Reino dos Céus, o próprio Deus! (Revista Arautos do Evangelho, Setembro/2015, n. 165, pp. 36-37)

 

Por Ir. Maria Cecília Lins Brandão Veas, EP

 

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