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Artigo: A civilização e os seres possíveis no mundo finito e em Deus

Bogotá (Domingo, 14-03-2010, Gaudium Press) Sabemos que São Tomás de Aquino distingue “grosso modo” entre dois tipos de entes: ” O ente é de duas classe, a saber, ente real e ente mental”, afirma no ‘IV Metaphysicorum’.

Não obstante, o ente mental – ou ente ideal – explica Aquino, pode ser ‘irreal’ ou ‘realizável’.

“Desde então é preciso sublinhar, frente ao ente real, a peculiaridade do ‘ente ideal’, como ‘realizável’ e como ‘irreal’. Porque se, desde o modo objetivo, existem essências apreendidas que podem ter também um ser extra-mental, estas apenas deveriam chamar-se “entes ideais realizáveis” e nunca “entes de razão”, explica Juan Cruz, no livro “Creación, signo y verdad – Metafísica de la Relación en Tomás de Aquino”. Aos “entes ideais realizáveis” se opõem, pois, os “entes de razão” que são os “entes ideais irreais”, os que só podem existir no intelecto de quem os concebe.

Entretanto, queremos focar nossa atenção sobre os “entes realizáveis”, que equiparamos aqui aos “possíveis”. Não são entes reais – pois ainda não têm realidade extra-mental – mas são realizáveis, como já foi dito. Cruz – que dirigiu até 2006 a mundialmente famosa coleção de Pensamento Medieval e Renascentista da Editora da Universidade de Navarra – afirma que os entes possíveis possuem um ser “aptidão”; eles têm a aptidão para serem reais, insinuando assim que buscam sua realização.

Os possíveis no Ser Divino
O tópico anterior são considerações que se dirigem ao ser finito, ao ser criado. Pois, quando consideramos o Ser Divino, temos de dizer primeiro que os entes possíveis têm na sua Causa e Ele lhes dá uma realidade “muito real”: Não há nada, por exemplo, que um ser humano chegue a conceber como possível, que tenha começado a existir em sua mente divina, que já não possua existência na Mente Divina.

Ademais, sabemos por São Tomás, que no Ser Divino, essência e existência se confundem, são o mesmo. Portanto, existindo já os possíveis na Mente Divina, podemos dizer que eles fazem parte de sua essência e por ele, os possíveis no que diz respeito ao nome não são senão participação da essência divina. E se já existem na essência divina, têm uma existência muito real, repetimos.

Dessa forma, o tópico anterior não é senão uma tentativa de fundamento – é certo, um tanto demasiadamente filosófica – para dizer que a atividade criadora do homem, que é a conversão dos possíveis em seres com realidade extra-mental, não é senão uma aproximação da essência divina.

Possíveis e possíveis
Existe uma “essência” chamada homem, que pode ser definida como “animal racional”; entretanto esta definição não esgota por inteiro ao que impropriamente chamaríamos características da essência humana, pois ao homem também lhe corresponde, além da razão, a vontade ou apetite racional, os sentimentos – diferentes aos dos animais, pois se interpenetram com a vontade e a razão -, sensações – diferentes também aos dos animais, pois se determinam, além de elementos meramente animais, por mil fatores que são especificamente humanos etc. E em cada uma das características essenciais do homem, como nas acidentais, cabe mais ou menos perfeição, por assim dizer, pode haver uma maior “integridade”. É claro, todos os homens têm razão (em princípio), mas em uns ela é mais aguda, perspicaz ou abrangente do que em outros, para um conjunto amplo de temas ou para âmbitos específicos, e isto por uma determinação inata ou por um desenvolvimento posterior.

Um Mozart, por exemplo, possuía uma inteligência muito apta para encontrar as notas que unidas produziriam uma bela melodia, bem mais apta que a da grande maioria dos homens. Entretanto, todo homem tem o que chamaríamos uma inteligência musical. Assim como todo homem possui memória, mas a memória de são Tomás de Aquino talvez ninguém a tenha tido em toda a história. O que é próprio da memória, a essência da memória? A capacidade de recordar, diríamos com simplicidade para não aprofundar em detalhes. Essa capacidade todo homem a tem, contudo, São Tomás de Aquino a tinha em um grau excepcional, muito mais próximo à “memória perfeita” inexistente na realidade finita, mas existente na Essência Divina, de onde tudo é perfeitíssimo.

Em Mozart ou em Beato Angélico ou em qualquer homem
A perfeição nas propriedades ou das capacidades, com frequência se vai manifestando com o passar do tempo, à medida que são exercitadas. Mozart aos quatro anos já era um gênio, mas, certamente, sua genialidade brilhou mais aos 10 ou aos 20. Um Beato Angélico, seguramente, foi aperfeiçoando sua capacidade pictórica com o caminhar dos dias. Eles converteram suas grandes potencialidades em gigantescas atualidades. Suas capacidades inatas se expressaram de maneira mais perfeita com seu uso; com a experiência que adquiriam eles produziam músicas mais próximas à “música perfeita”, rostos mais parecidos ao “rosto perfeito”.

Em outro exemplo, imaginemos a primeira carroça puxada por cavalos que foi construída pelo homem. Certamente, muito rústica, talvez bastante incômoda para nossos padrões atuais. Na época, esta carroça representou a materialização de um possível e constituiu a expressão mais perfeita – a única existente – de uma essência, a da carroça puxada por cavalos. Com certeza, mirando-a, aqueles que contemplavam a carroça experimentariam a alegria própria de quem observa um possível realizado. Entretanto, essa realidade não era senão um degrau da escada que levaria até a “Carroça de Cavalos Perfeita existente na Mente Divina”. Depois desta primeira carroça, vem uma segunda e uma terceira, até chegar a umas maravilhosas, como as existentes nos Museus de Carroças de Versalhes, na França.

Resumindo, o ser possível não é meramente um ser não real, mas um ente que tem a aptidão para ser real e essa aptidão já é como uma “tensão”, uma tendência à realidade. (Neste sentido, Plínio Côrrea de Oliveira afirmava que Deus não fez o universo do modo mais perfeito possível, para que o homem pudesse associar-se ao seu trabalho criador, aperfeiçoando-o). Os possíveis não existem somente no intelecto do homem que os concebe, senão na sua Causa que é a Mente Divina. Na Mente Divina os possíveis têm uma existência perfeitíssima. O homem, em sua sede de perfeição infinita, em seu caminho até Deus, vai construindo realidades possíveis, cada vez mais perfeitas e elas se aproximam cada vez mais à essência divina, causa forma e eficiente de todas as possíveis criaturas ou não.

O vaso de barro, o de porcelana, o de metais preciosos
Dessa forma, todo possível realizado é um degrau mais alto no caminho que nos leva a Deus, se ele manifesta mais perfeição que os anteriores. Um vaso de barro, quando feito pela primeira vez, representou um progresso rumo à perfeição divina. Depois dele vieram os vasos de porcelana e os de metais preciosos.

Não dizemos aqui que tudo deva ser sempre o mais perfeito possível para que verdadeiramente nos encaminhe a Deus. Na casa do Senhor há muitas moradas e a escada que conduz ao céu requer muitos degraus. Entretanto, há uns mais próximos ao topo. Se amanhã um hipotético tirano universal decretasse a destruição de todas as porcelanas de Sèvres e permitisse, apenas, os objetos de barro, ele teria destruído – deste caminho – um trecho essencial, que já havia sido construído pelo homem e com sua ação teria ocasionado um retrocesso no caminho que conduz a Essência Perfeitíssima, ao Possível Absoluto, a Deus.

Não fará parte do acolhimento à invocação cristã “Venha a Nós o Vosso Reino” este mundo povoado cada vez mais de possíveis, cada vez mais de perfeitos, cada vez mais de próximos à Essência Divina, que nos ajude a nos aproximarmos Dela? Parece uma interpretação válida.

E nos importa que nós não sejamos os “donos” desses possíveis mais perfeitos realizados; o importante é que tenhamos a possibilidade de contemplá-los e que o egoísmo não tenha anulado nossa capacidade de admirá-los.

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