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Artigo: “Vamos lá!”

 

“Vamos lá!” Ouvi estas palavras pelo menos 500 vezes nas últimas quatorze horas de vida de um irmão de vocação, pertencente à mesma associação religiosa. Há quatro meses este religioso vinha lutando contra um câncer, quando descoberto já havia minado sua saúde de forma funesta. No último mês de vida, Teófilo, é o nome pelo qual vamos designá-lo neste artigo, estava sofrendo enormemente. Quase não sentia dores físicas, mas sua indisposição ia se tornando cada vez maior.

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Chegou o momento de interná-lo em um hospital, o que não lhe agradou nada, pois a deixar este mundo, queria fazê-lo dentro de uma casa religiosa ao lado de seus irmãos de vocação. Mas até isto a Providência lhe exigiu…

Já internado, o médico lhe havia dado uma semana de vida, mais ou menos, o que se concretizou com incrível exatidão. No entanto, para que tivesse um auxílio pleno em seu padecimento, foi feita uma escalação na qual a cada doze horas se trocava o seu acompanhante, de maneira que sempre estivesse ao seu lado um membro de sua associação religiosa. E coube a mim o dia 10 de novembro, memória de São Leão Magno, assisti-lo das nove horas da manhã até as vinte e uma horas.

Como em período algum tinha ajudado a Teófilo em sua enfermidade, não fazia nem ideia de como proceder em caso de alguma necessidade, portanto pedi ao meu superior dispensa de acompanhá-lo neste momento extremo, o que veio a ser negado. E como diz o ditado: “o que não tem remédio, remediado está”, lá fomos para o hospital naquela manhã cinzenta.

Quando entramos no quarto de Teófilo, ambas as partes se impressionaram. Nós pela situação em que se encontrava, pois havia piorado enormemente nos últimos dias; ele por perceber que quem iria auxiliá-lo naquele dia estava completamente despreparado. Esta situação o fez soltar um gemido à pessoa que o acompanhara a noite: “Não me deixe, pois o senhor é uma pessoa-chave para mim neste momento”. E novamente aquele ditado se fez sentir para ele também, não tinha remédio…

Enfim, seriam doze horas para compartilhar o mesmo quarto e nada melhor que ir adiantando as orações diárias para aproveitar o tempo, mas logo veio o primeiro pedido de Téofilo. Devido ao estágio avançado da doença ele já não conseguia dormir, o que lhe causava grande incômodo e isto se somou ao começo de delírio e ordens contraditórias. A paciência se tornou uma virtude indispensável neste dia. A cada três a cinco minutos éramos solicitados: ora para lhe servir água, mexer na posição da cama, verificar se a enfermeira demoraria muito para voltar ou simplesmente consolá-lo.

Entre as ordens contraditórias, Teófilo pediu para chamar a enfermeira, mas poucos instantes depois que saímos, ouviam-se os brados dele dentro do quarto nos solicitando. Quando entramos, ele disse: “Fique ao meu lado, não saia de perto de mim”. E explicava que gostaria de ter permanentemente um irmão de vocação junto dele, independente de quem fosse, segundo suas palavras.

Que espetáculo foi assistir ao ser humano, tantas vezes auto-suficiente em sua natureza, não poder contar com as próprias forças para as ações mais necessárias de sua existência. Ao longo deste dia pudemos contemplar a miséria do pecado original ao mesmo tempo em que víamos como o sofrimento é capaz de unir o homem a Deus.

Entre leves sonolências rompia o ar invocações a Santíssima Virgem, tais como: “Auxiliadora dos Cristãos”, “Santa Mãe de Deus”, “Mãe de Misericórdia”, entre outras. Eram frequentes estes suspiros religiosos, sobretudo nos momentos em que o mal-estar aumentava. Um fato nos chamou muito a atenção. Na parte da tarde, mais ou menos às quinze horas, ele pediu ajuda para encontrar, mas não dizia o que.

Foi-lhe oferecida, então, um pouco de água, mas esta não lhe agradara. Começou uma série de interpretações a respeito da vontade de Teófilo, mas todas elas não lograram sucesso; até que conseguiu exprimir-se: “Eu quero alguma coisa para oferecer ao SENHOR”. Bem, não poderia ter uma atitude melhor, e quando lhe foi proposto oferecer seus sofrimentos, ele acedeu de bom grado, dizendo: “Vamos lá! É isto mesmo que devo oferecer”. Logo depois se acalmou e voltou a descansar.

Devido à sua indisposição, Teófilo pedia desculpas às visitas por não poder recebê-las naquele instante, mas agradecia a amabilidade e a atenção em visitá-lo. Somente dois gêneros de pessoas eram aceitos com facilidade: os médicos e os sacerdotes, ambos com o poder de curar, cada um a seu modo. O doutor que lhe tinha feito a primeira cirurgia, há quatro meses, lhe visitou por volta das cinco e meia da tarde, o qual foi acolhido com grande alegria e, inclusive, médico e paciente trocaram algumas palavras em francês, nas quais o doutor insistia para que Teófilo descansasse.

Pouco depois, veio ao encontro de Teófilo um sacerdote que lhe conhecia há quase quarenta anos, o qual foi recebido com regozijo e satisfação. Assim passavam-se as horas para Teófilo que – segundo ele – não estava conseguindo descansar…

Recebeu também um parente seu que permaneceu por volta de duas horas no quarto e quando este saiu, Teófilo estava muito ofegante e necessitou que lhe pusessem oxigênio a fim de auxiliar-lhe a respiração.

Assim permaneceu até as nove horas da noite, quando outro sacerdote, que também o conhecia há décadas, rompeu o silêncio do quarto oferecendo-lhe a absolvição sacramental, a qual foi aceita com grande compenetração. Após a saída do ministro de Deus, o quarto entrou em uma atmosfera de tranquilidade, iluminada por uma tênue lâmpada laranja que apenas proporcionava a distinção das silhuetas.

Depois de um dia cheio de impressões, aproveitamos o tempo que restava antes da troca de vigília para ler um pouco. Sem ser uma voz física, pareceu-nos ouvir a voz de Teófilo dizendo aquelas palavras de antes: “Fique ao meu lado, fique ao lado”. Estranho sentimento que nos impulsionou a aproximar-nos de seu leito. Tinha chegado o momento grandioso da partida. Ele respirava mais ofegante, mas ainda estava lúcido. Ao ser interpelado se estava passando bem, não retorquiu como das outras vezes, o que indicava de maneira inequívoca a circunstância que se acercava.

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Antes mesmo de chamar a enfermeira, rezamos juntos as mesmas invocações a Nossa Senhora que tantas vezes brotaram de seus lábios durante o dia. Neste momento chegaram mais dois irmãos de vocação que vieram para passar a noite com Teófilo, mas já não seria necessário, pois antes do alvorecer ele já estaria contemplando outros panoramas…

Os outros dois irmãos saíram para tomar providências, um chamou a enfermeira de plantão e o outro pediu a presença do mesmo sacerdote que estivera com Teófilo pela tarde. Ambos pedidos foram atendidos prontamente: a enfermeira se certificou de que realmente estava chegando o fim e pouco depois entrava o presbítero a fim de ministrar os últimos sacramentos e fazer as derradeiras orações. Quando a benéfica medicina já não podia sustentar a vida daquele pobre ser humano, era a vez da Igreja de mostrar-lhe a verdadeira vida que estava para se iniciar.

Nunca estas orações para uma boa morte tomaram tanto vigor e foram tão reais como nesta ocasião. Era o momento em que Deus se encontrava com o homem, o infinito tocava no que é finito. Para se ter uma imagem desta sensação basta observar o mar quando se perde no horizonte e se oscula com o céu, nós não sabemos bem onde termina um e começa o outro. Assim nos sentíamos todos os que estavam assistindo a esta agonia, dois sacerdotes e mais uns seis religiosos. Até onde podemos chamar a vida de vida, não era possível ter certeza.

A respiração de Teófilo foi ficando cada vez mais rarefeita e entrecortada por espaços maiores de tempo, mas tudo isso paulatinamente. As orações se multiplicavam enquanto as forças de Teófilo o abandonavam. Eram vinte e duas horas e cinquenta minutos quando sua agonia terminou. Finalmente descansou, atitude que o dia inteiro estava procurando fazer, mas não conseguia. Para pedir o auxílio da Santa Mãe de Deus, entoaram solenemente o cântico da Salve Regina. O ambiente foi tomado de uma bênção e paz que mais parecia uma igreja. Se disséssemos que naquele instante Nosso Senhor Jesus Cristo entraria pela porta a fim de julgá-lo, não era de se espantar, pois tudo inspirava de uma sacralidade impressionante.

Depois deste pequeno cerimonial, tiveram que iniciar os preparativos para o velório e posteriormente o enterro. Já portando o hábito religioso, o qual não era possível na cama de um hospital, Teófilo ganhou outro aspecto, seu sofrimento na agonia se converteu em austera tranquilidade.

Uma última palavra ainda se pode dizer. Queira Deus que todos nós religiosos, após entregar a vida inteira ao Seu serviço, possamos dizer que em todos os momentos, dificuldades, provações e mesmo diante do espanto da morte, com a alma cheia de confiança na Mãe de Deus e sem nunca desanimar: “Vamos lá!”

Thiago de Oliveira Geraldo

 

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