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Qual é o verdadeiro eixo da História?

Redação – (Quarta-feira, 19/08/2015, Gaudium Press) – As realidades materiais, como o papel do Sol na vida sobre a Terra, são facilmente constatadas e admitidas por todos. As espirituais realidades espirituais, entretanto, custam muito mais a serem reconhecidas, inclusive pelos analistas da História.

Transcrevemos, sobre esse tema, o pensamento do Padre Juan Carlos Casté, EP: -Situar a História da Igreja dentro da História universal ou, melhor dizendo, a História profana na História da Salvação, parece-me ser o principal dever de um autêntico historiador cristão. De fato, esta concerne a todos os homens, pertencentes ou não à Igreja; além disso, é, afinal de contas, História.

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São João Bosco com São Domingos Sávio
Basílica do Sagrado Coração
de Jesus, Roma

Entretanto, verifica-se desde alguns séculos – creio não equivocar-me ao situar em fins da Idade Média o início desse processo – uma gradual dissociação entre a História da Igreja e a História universal. Assim, abundam os manuais desta última nos quais são raras as referências ao papel da Esposa Mística de Cristo nos acontecimentos. E muitos a mencionam apenas para tecer acerbas críticas à atuação de certos eclesiásticos ou difundir contra ela calúnias emanadas do espírito laicista e anticristão de seus autores.

O silêncio de muitos historiadores

Um exemplo dessa separação entre ambas as disciplinas históricas faz-se notar na ausência de menções a muitos santos que com sua atuação provocaram mudanças determinantes na sociedade de sua época.

Tomemos a esmo o caso do grande São João Bosco: poucos manuais de História laicistas o mencionam; no entanto, o trabalho por ele realizado em favor dos seus queridos birichini representou uma radical inovação na forma de tratar a juventude abandonada, com repercussões não pequenas no campo social. Consideremos também a transformação operada por São Camilo de Lellis e seus discípulos, em fins do século XVI, no modo de conceber e organizar os hospitais, com todos os benefícios daí decorrentes para a humanidade.

Poderíamos acrescentar casos como o de Isabel a Católica e seu empenho em proteger e evangelizar os indígenas do Novo Mundo, enfrentando a ganância de muitos conquistadores. Pode-se perguntar se – sem a promulgação de suas famosas Leyes de Indias- a América Latina seria hoje a região mais católica do mundo e se teria sido possível alcançar o grau de integração étnica tão característico de nosso Continente.

Para certos historiadores, infelizmente, exemplos como estes não merecem sequer ser mencionados. E quando incluem um ou outro em seus manuais, atribuem-lhe uma importância muito menor da que tiveram de fato no fluxo geral dos acontecimentos.

Uma religião essencialmente histórica

Por outro lado, é preciso reconhecer o importantíssimo aporte dos cronistas cristãos à historiografia de suas respectivas sociedades; sem dúvida, eles realizaram um trabalho pioneiro e insubstituível.

Nada de estranho nesta constatação, pois o Cristianismo é uma religião essencialmente histórica. O depósito da Revelação, plenamente consumada em Jesus Cristo, se transmite e se explicita no decorrer dos séculos. E para isso são necessárias testemunhas que façam chegar com fidelidade às gerações posteriores a mensagem da Salvação. Os Evangelistas – como também, mutatis mutandis, os autores veterotestamentários – têm consciência da importância daquilo que transmitem. É este o motivo de eles indicarem com escrupulosa precisão certos detalhes dos acontecimentos relatados.

Até o nascimento do Divino Salvador, a religião judaica alimentou-se das crônicas que narravam as gestas dos patriarcas, governou sua vida pelas máximas e preceitos dos profetas e rezou repetindo os Salmos inspirados pelo Espírito Santo a Davi, como, diga-se de passagem, continuamos a fazer hoje dia a dia, na Santa Missa e na Liturgia das Horas.

À margem dos Evangelhos, não faltaram na época dos primeiros cristãos crônicas e relatos que forneceram aos historiadores de séculos posteriores documentação sobre as formas de vida, os ritos e a cultura, bem como sobre as relações religiosas, políticas, sociais e econômicas daqueles tempos.

Fé num Deus pessoal e providente

As crônicas cristãs – excelentes fontes para seguir os caminhos da História humana – não se distinguiam, em sua forma, das pagãs, mas refletiam como fundo de quadro uma visão universal da História. Poderíamos dizer que procuravam descobrir na voragem dos acontecimentos os traços concretos do desígnio de Deus sobre a humanidade, delineados nas Sagradas Escrituras.

Exemplo disso é Teófilo de Antioquia que, no Livro III de Ad Autolicum, escrito depois do ano 180, esboça uma cronologia da História do mundo, desde a Criação até a morte do imperador Marco Aurélio. Algumas décadas depois, Sexto Júlio Africano redige os cinco livros nos quais compara os acontecimentos bíblicos com a História cristã, grega e do povo judeu. No início do século IV, deparamo-nos com a História Eclesiástica, de Eusébio de Cesareia, que toma em consideração a forma pela qual diversos povos computam o transcurso do tempo e menciona os fatos da História universal dispostos em esquemas sinópticos.

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Isabel I da Espanha
Museu Naval, Madri

Ou seja, os historiadores cristãos dos primeiros tempos tinham essa visão universal que harmonizava os eventos religiosos e os meramente humanos. Sua forma de entender os fatos históricos pressupõe a fé em Deus, num Deus pessoal e providente que criou todas as coisas e as sustenta, as governa e dirige os acontecimentos humanos.

Perspectiva cristã da História em seu conjunto

Após a derrocada do Império Romano e as invasões bárbaras no Ocidente, o mundo da cultura se refugiou nos conventos e mosteiros. Coube, assim, aos monges e religiosos relatar os eventos dignos de memória que mais tarde seriam de incalculável valor para estudiosos e pesquisadores.

Os historiadores medievais – monges ou sacerdotes em sua grande maioria – realizam uma leitura cristã da História. Nosso Senhor Jesus Cristo é o alfa e o ômega, princípio e fim dos tempos. Criação, Encarnação e Parusia são os momentos mais importantes da humanidade que, depois de ter conhecido a queda original e a Redenção, caminha rumo ao fim dos tempos.

Nessa perspectiva cristã, Deus guia os homens nas vias da salvação eterna. Portanto, intervém de forma direta ou indireta em seu devir. Descobrir esses sinais sobrenaturais na História do mundo, quase sempre encobertos por causas segundas, é próprio do historiador dotado de uma visão universal dos acontecimentos.

Na Idade Média se reconhecia o senhorio de Deus nos acontecimentos e, em consequência, sobre o mundo; e isto era um fato, por assim dizer, político que a História não podia deixar de considerar. A identificação da Igreja histórica com a agostiniana Civitas Dei foi também um aspecto típico da Civilização Cristã medieval, que exerceu forte influência sobre a teoria e a prática da historiografia.

O Humanismo: uma revolução cultural

Com o que poderíamos denominar “revolução cultural” do Humanismo, teve início esse divórcio entre História humana e História da Igreja, concomitante a um processo de progressiva separação entre fé e razão, teologia e filosofia.

O equilíbrio entre fé e razão, teologia e filosofia – alcançada pela Escolástica no século XIII – saltou pelos ares, abrindo caminho para uma visão assistemática e até inorgânica da condição humana. Do teocentrismo medieval passou-se para uma visão antropocêntrica da qual a religião não está excluída, mas relegada a um discreto segundo plano. A visão do universo tornou-se muito mais afim ao paganismo que ao Cristianismo.

No âmbito desse processo, a História religiosa passou a ser um mero capítulo da História do homem. E tal separação – convém insistir – não se restringiu ao campo da História, mas abarcou todos os aspectos da vida do homem ocidental. A ruptura com a tradição teológica tomista e medieval cedeu lugar, num primeiro momento, a um renascer do paganismo antigo, e séculos depois desembocou no neopaganismo de nossos dias, muito mais ilógico, radical e desestruturado que o humanismo renascentista.

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Cristo rodeado pelos símbolos dos quatro
evangelistas, Codex Bruchsal – Biblioteca do
Estado de Baden, Karlsruhe (Alemanha)

Os frutos dessa “revolução cultural” não tardaram a chegar, abrindo campo para um dos momentos mais críticos da História da Igreja: o da pseudorreforma luterana.

Um renascer da historiografia religiosa

Entretanto, nem tudo é negro no panorama cultural moderno. Após séculos de vão e denodado esforço para expulsar Deus da História, cada vez mais especialistas procuram colocar a História da Igreja na posição que lhe corresponde dentro do conjunto da História universal.

Até o fim da Segunda Guerra Mundial, a História religiosa era posta de lado, desconhecida, desprezada. Sem embargo, desde os anos 70 ela está se tornando uma das disciplinas mais ativa e frutuosamente desenvolvidas, por exemplo, na França. Multiplicaram-se nos últimos anos os trabalhos, os colóquios, as teses, renovando em profundidade os métodos e as problemáticas. Facilitaram a tomada de consciência sobre a importância dos fatores religiosos na História. Através da exploração dos ritos, da fé, das crenças e de suas implicações, se alcança a substância própria do homem e de suas motivações nos domínios político, social, econômico ou cultural. A História religiosa é essencial para se compreender a História global do homem.

Termino com um ilustrativo fato. Faz alguns anos, escutei de uma docente universitária francesa – católica praticante, professora de Sociologia das Religiões – este espirituoso comentário:

“Antigamente, quando eu queria fazer rir meus alunos, falava-lhes de Deus e da Religião; de política e economia, quando desejava que eles ficassem sérios. Agora, ao contrário: se quero mantê-los sérios, falo-lhes de Deus e da Religião; se viso fazê-los rir, abordo temas políticos ou econômicos”.

Por Pe. Juan Carlos Casté, EP
(in “Revista Arautos do Evangelho”, n. 152, pp. 16 a 18)

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