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“Como Eu vos tenho amado…”

Redação (Quinta-feira, 27-10-2016, Gaudium Press) Entrecortado apenas pelas solenes palavras do Redentor, o silêncio reinava no Cenáculo. Era noite e a Ceia já ia adiantada. Superando as repetidas provas de amor dadas até então aos seus seguidores, Nosso Senhor Jesus Cristo acabava de instituir a Sagrada Eucaristia, o maior tesouro por Ele legado à Santa Igreja. Diante de tão alto mistério, os Apóstolos mantinham-se recolhidos, incapazes de avaliar a grandeza do acontecimento, porém comovidos pelo ato de entrega que acabavam de presenciar.

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Judas se retirara minutos antes, sem nenhum dos Onze suspeitar qual era a sua verdadeira intenção. Logo após, Cristo anunciou: “Filhinhos meus, por um pouco apenas ainda estou convosco. Vós Me haveis de procurar, mas como disse aos judeus, também vos digo agora a vós: para onde Eu vou, vós não podeis ir” (Jo 13, 33).

Pressentindo a gravidade do momento, todos estavam atentos às suas palavras. Com infinita sabedoria, o Homem-Deus reservou para aquela última hora o mais sublime de seus discursos.

Radical transformação sobre a face da Terra

Difícil é acompanhar a narrativa do Evangelista São João sem que este colóquio não nos comova, e a sua leitura silenciosa talvez até sugira no fundo de nossas almas o timbre de voz e a entonação com que foi pronunciado. Neste instante, Ele declara: “Dou-vos um novo mandamento: Amai-vos uns aos outros. Como Eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 34-35).

Num singelo edifício da Cidade Santa, pouco antes da Paixão, fora posto termo ao regime de ódio, rancor e desavenças recíprocas que vigorava na Antiguidade, tendo início uma transformação radical sobre a face da Terra. O gênero humano como que despertava de um pesadelo para encontrar-se diante de outra perspectiva: a da caridade cristã.

Como Eu vos tenho amado....pngÀ medida que a Igreja se expandia e exercia sobre os povos a sua ação benfazeja, os costumes foram sendo modelados de acordo com o espírito de Jesus Cristo. As leis inclementes tornaram-se justas, a indiferença pelos necessitados cedeu lugar às obras de misericórdia, às instituições de caridade e aos hospitais. Pela primeira vez reconheceu-se a dignidade dos escravos, os quais já não eram considerados res, mas sim herdeiros do Céu, como todos os demais homens redimidos pelo sacrifício do Calvário.

“Vede como eles se amam!”

Suave, imperceptível à primeira vista, outra mudança se verificou: entre os cristãos, a convivência adquiriu uma elevação até então desconhecida. Pela posse do estado de graça os batizados passaram a tratar-se mutuamente conforme as máximas do Evangelho, vencendo as invejas, intrigas e desavenças ante o olhar atônito do mundo antigo, incapaz de penetrar no segredo dos seguidores do Salvador.

Como recorda Dom Jean-Baptiste Chautard, “o Cristianismo propagou-se, menos por frequentes e longas discussões, que pelo espetáculo dos costumes cristãos”.1 A simples presença dos filhos da luz acusava os pagãos, que tinham suas consciências maculadas pelo ódio, obrigando-os a confessar: “Vede como eles se amam!”.2

Em nossos dias comprovamos quanto o espírito do mundo desfavorece esse convívio de cunho sobrenatural. O ritmo frenético das cidades modernas nos impede de consagrar a Deus e ao próximo uma parcela adequada de tempo, enquanto a mentalidade mercantilista largamente difundida fomenta um consumismo intemperante, próprio a extinguir nas almas as aspirações mais elevadas. Ela também nos leva a conceber o relacionamento humano à maneira de um empreendimento
lucrativo, baseado nas vantagens e desvantagens que possa oferecer.

Esses desvios do nosso século podem ser corrigidos apenas se olharmos para Aquele que, antes de promulgar o Novo Mandamento, deu exemplo de como ele deve ser vivido. Desta forma haverá entre os seus seguidores a mesma força de atração para o bem que distinguiu os fiéis da Igreja primitiva: “Se os católicos, se ao menos os seus homens de obras tivessem algum tanto desse esplendor de vida cristã […] como seria então irresistível o seu apostolado sobre esses pagãos modernos”, conclui Dom Chautard.3

Deus quer que os homens se ajudem a obter a salvação

A necessidade de estar junto a outros, sobretudo em função de um ideal comum, encontra sua causa na própria constituição da alma humana. Conforme ensina São Tomás de Aquino, seguindo o pensamento dos antigos filósofos, a nossa natureza é,
de si, social.4 Fomos feitos para viver na companhia de nossos semelhantes e no convívio com eles encontramos o bem-estar de nossa condição.

Deus assim dispôs por uma razão superior, que se torna clara em vista do chamado universal à salvação: devemos nos ajudar uns aos outros a obter mais facilmente e com maior mérito a bem-aventurança eterna. Da mesma forma como um alpinista precisa ser sustentado ao longo da escalada por seus companheiros e, por sua vez, presta socorro aos que resvalam, cada um de nós deve auxiliar os demais e ser por eles fortalecido para manter-se perseverante na fé.

Sobre essa união de esforços e vontades paira a promessa de Nosso Senhor: “Onde dois ou mais estão reunidos em meu nome, aí estou Eu no meio deles” (Mt 18, 20). Quando os que professam a mesma fé se congregam com a finalidade de honrar a Deus – especialmente em Celebrações Eucarísticas, cerimônias litúrgicas e atos públicos – atraem a sua presença, a qual, embora não se manifeste de maneira concreta, é reconhecível pelas graças concedidas ao conjunto dos fiéis. Estas podem ser eficazes a ponto de reanimar os que se encontram abatidos e até estar na origem de autênticas conversões.

O trato respeitoso estimula a prática da caridade

Em consequência, entre as almas marcadas pela mesma predestinação deve reinar um imbricamento que se faça notar, sobretudo, por um grande respeito mútuo. E este não se cifra tanto na utilização das consagradas fórmulas de convenção social, sem dúvida boas e indispensáveis, quanto em procurar identificar o desígnio da Providência a respeito daqueles com quem tratamos, reconhecendo que cada homem é um reflexo único de Deus.

Por isso a manifestação mais imediata de nossa caridade consiste em demonstrar aos outros um apreço correspondente à dignidade à qual foi elevado pela vida da graça. Se prestarmos atenção, veremos como poucas coisas podem dar tanto comprazimento ao nosso próximo quanto ver-se objeto de uma consideração dessa índole, baseada no reconhecimento dos dons que lhe foram concedidos com vistas ao cumprimento de sua vocação. Isso vai muito além das amabilidades de conotação comercial às quais estamos acostumados e favorece a verdadeira amizade, que se inicia neste mundo e pode prolongar-se no outro, quando estivermos gozando da bem-aventurança eterna, na glória.

O trato respeitoso estimula em larga medida a prática da caridade, pois quem é objeto dessa estima sente-se incentivado a dar passos mais decididos na linha do bem, a definir-se por ele com maior convicção. O bom trato e a verdadeira cortesia – quer na relação entre iguais, quer na obediência aos superiores, quer na consideração por estes demonstrada aos subalternos – são de comprovado valor para impostar os mais variados temperamentos no caminho da santidade.

Pelo contrário, os modos simplificados e não raras vezes eivados de vulgaridade difundidos em nossa época despreparam as jovens gerações para abraçar a virtude, levando-as a agir como se as pessoas não tivessem a dignidade de filho de Deus.

O Divino Arquétipo de todo relacionamento

Em Cristo Jesus, o Verbo Encarnado, encontramos o ápice de todas as virtudes e contemplamos a máxima perfeição que nossa natureza auxiliada pela graça pode atingir. O Filho Unigênito de Deus é o arquétipo do convívio humano “porque n’Ele foram criadas todas as coisas […]. Tudo foi criado n’Ele e para Ele. Ele existe antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem n’Ele” (Col 1, 16-17).

Se analisarmos os episódios narrados nos Evangelhos, notaremos na conduta de Nosso Senhor traços de compreensão e condescendência levadas a um limite inimaginável. Dir- -se-ia que, sendo a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Ele pouco poderia encontrar de aprazível nos pecadores, pois conhece nossos defeitos até as suas mais profundas raízes.

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Entretanto, Ele ama cada um de nós individualmente com inimaginável misericórdia. Nada, exceto a nossa própria vontade, pode afastar-nos da efusão dessa bondade, nem sequer nossa insuficiência. Que enorme esperança isso deve nos dar!

Temos o dever de comunicar algo do que recebemos

Essa dadivosidade deve modelar as nossas vidas, como lembra Mons. João Scognamiglio Clá Dias: “Devemos a Ele [a Deus] a vida e o ser. Além disso, a Redenção e as inúmeras graças e benefícios que foram outorgados a cada um ao longo da existência. Quanto mais abundantes tenham sido estes, maior a obrigação de restituir. Por isso, exclama o Crisóstomo: ‘Não é verdade que, mesmo se tivéssemos dado todos os dias a vida por quem assim nos amou, não Lhe teríamos retribuído dignamente ou, mais ainda, não lhe teríamos pago nem uma mínima parte de nossa dívida?'”. 5

Ora, um corolário se impõe: “quem se reconhecer merecedor de castigo pelas suas faltas, ao ver- -se perdoado por Deus de maneira tão gratuita e superabundante, estará disposto a fazer o mesmo com os irmãos”.6 O nosso dever, ao encontrar alguém necessitado de auxílio, é o de comunicar algo daquilo que recebemos, na intenção de fazê-lo participar das mesmas graças com que fomos beneficiados.

Se agirmos assim, daremos uma prova de fidelidade e gratidão, pois a atitude adotada pelo homem diante do próximo “é determinada pela que adotou diante de Deus”.7 Essa disposição atrai a benevolência divina e faz com que a vida ao nosso redor se assemelhe, de alguma forma, à do Paraíso.

“Setenta vezes sete…”

São Pedro costumava ser o porta-voz das dúvidas do Colégio Apostólico, levantando perguntas que deram ao Divino Mestre oportunidade de formá-los sobre os mais diversos temas. Em certa ocasião, indagou-Lhe: “Mestre, quantas vezes devo perdoar o meu irmão? Até sete vezes?” (Mt 18, 21). É clara a sua intenção de estabelecer limites à misericórdia, supondo de que este número “generoso” seria suficiente para solucionar a questão.

Nosso Senhor, porém, não via assim o problema. Para surpresa do Apóstolo, respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mt 18, 22). Mais do que uma quantidade de perdões, esta inesperada resposta indica uma postura: é
preciso perdoar sempre.

Assim, se num desacordo entre batizados entram em causa apenas interesses pessoais, sem comprometer a glória de Deus ou a defesa de algum princípio, nossa disposição deve ser de plena indulgência para com quem nos ofende. Embora isso nos custe, traz uma consequência pouco perceptível à primeira vista, mas que cedo ou tarde se torna clara: o verdadeiro vencedor é aquele que perdoa.

Como Eu vos tenho amado....pngAdemais, quem recebe com paz de alma as humilhações será elevado no Céu e, de algum modo, recompensado também nesta Terra. Em muitos casos sua mansidão obtém de Deus a emenda dos que o ofendem, e este é o autêntico triunfo.

“Viver é estar juntos, olhar-se e querer-se bem”

Na vida dos Santos e das almas de escol podemos conhecer a maravilha do convívio humano bem conduzido. Neles comprovamos a ação do Espírito Santo sobre o instinto de sociabilidade, atraindo-nos para seguir a mesma via de perfeição.

Dona Lucília Corrêa de Oliveira, que viveu em São Paulo e faleceu no ano de 1968, destacou-se desde cedo por notável bondade voltada para o bem do próximo, inspirada na devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Como sua vocação estava intimamente ligada a esta representação de nosso Redentor, sua vida transcorreu marcada pelo desejo de confortar os outros em seus infortúnios e pela despretensiosa alegria de gozar da sua companhia.

Esse aspecto de sua personalidade, somado a uma pronunciada visão contemplativa e sobrenatural das coisas, era um convite constante aos que dela se aproximavam para se firmarem em seus lados bons de alma. Isso se verificava à maneira de um prolongamento do amor ao Sagrado Coração de Jesus, pelo qual ela comunicava uma irradiação da bondade que recebia aos pés d’Ele.

Certa vez, um acontecimento fortuito possibilitou a Dona Lucília deixar-nos sua concepção de vida. Novas perspectivas de apostolado numa cidade distante talvez levassem seu filho, Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, a ausentar-se do lar por longo período. O plano acabou sendo desfeito, e ela então lhe confidenciou: “Você compreende que se tivesse obtido bom resultado em seus trabalhos, isso o obrigaria a mudar-se para longe de casa e vir pouco aqui. E o convívio entre nós diminuiria muito! Para mim isso seria um grande sofrimento. Meu filho, viver é estar juntos, olhar-se e querer-se bem…”.8 Como a graça sugeria no fundo da alma de Dona Lucilia, este era o melhor sentido da existência.

Se nos dispusermos a fazer o mesmo com os outros, manifestando pela nossa amizade em função de Deus o quanto Ele os ama, estaremos prestando-lhes um valioso auxílio para a sua santificação.

A caridade fraterna nos faz merecer a companhia dos justos no Céu

O termo de nosso peregrinar neste mundo é a posse de Deus no Céu, onde formaremos, na companhia de todos os Santos, a gloriosa sociedade dos justos. Lá tudo será felicidade, sem qualquer sombra de tristeza que possa diminuir a nossa alegria. Então conheceremos o convívio que, nos planos do Criador, estava reservado para a humanidade desde todo o sempre.

Enquanto aguardamos esse dia, esforcemo-nos por merecer a amizade dos Bem-aventurados, exercendo- a sobre aqueles a quem, nesta vida, podemos fazer o bem: “Devemos ter por nosso próximo a mesma benevolência, estima e amor que esperamos os outros tenham por nós, e um respeito proporcional ao desígnio de Deus para com cada um. Falar ao próximo, ou sobre ele, como desejamos que o façam conosco; esconder e escusar suas faltas; sofrer suas imperfeições, debilidades e defeitos; louvar tudo quanto nele deve ser elogiado; defender seus interesses e servi-lo com afeto, exatamente como ansiamos que procedam conosco, e sempre por amor a Deus: eis a verdadeira prática da inocência e da santidade”.9

Por Irmã Carmela Werner Ferreira, EP
(in “Revista Arautos do Evangelho”, Agosto/2014, n. 152, pp. 34 a 38)

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